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Cenas Arquitetônicas

Daniel Corsi


Fazer Arquitetura é procurar entender o que a Arquitetura pode ser. É, possivelmente, no encontro entre a razão e os sentidos onde podemos, de fato, reconhecê-la em sua potência criativa. A folha de papel nunca se encontra em branco. Assim, para além de seus inícios engendrados pelo desenho, o ofício da Arquitetura também começa com experiências, pensamentos e palavras. Esta é a condição que nos coloca diante do exercício de uma ética orientada por nossos conhecimentos e vivências. Aliado a isso, se para lidarmos com a condição humana encontramos na construção das linguagens – verbais e materiais – um arcabouço seguro do qual a criação arquitetônica também faz parte, essa ética passa a evidenciar o caráter fundamental que imprime sobre as memórias que a Arquitetura originará em cada um de nós. Portanto, se por um lado a Arquitetura é construção de conhecimento, por outro, ela também é responsável pela construção de sentimentos. As vivências pessoais que possibilita são, então, parte de uma formação humana que orienta e conduz nossa presença no mundo, bem como daquilo que fazemos. O que está por trás da obra? É nos rastros de sua memória que podemos identificar a intimidade do autor com o mundo, o modo como este o acolhe e, finalmente, como o traduz em acontecimento novo. Mais do que nunca, precisamos nos permitir uma sensibilidade que nos ajude a compreender e relacionar com profundidade com a realidade que nos cerca. Ideias são sínteses dos estudos, das reflexões e das emoções impressas em quem as concebe. Por que o arquiteto fez de um modo ou de outro? São essas experiências que constroem os valores que suas realizações passarão a transmitir e as Cenas Arquitetônicas aqui apresentadas buscam compartilhar um pouco do significado que têm para o comprometimento permanente de se pensar e fazer Arquitetura.


O Muro | Las Arboledas

Paralisado diante do muro branco e absoluto de Barragán, me aborda uma senhora com sacolas de compras assombrada por minha hipnose arquitetônica diante daquela parede. Depois de olhar para mim e para o muro repetidas vezes, com suas sobrancelhas franzidas me pergunta: mas o que há nesse muro? Calmamente, contei-lhe tudo o que sabia e como os livros de história haviam me levado até ali. Sozinho novamente e ainda estático diante do objeto, certo tempo depois, numa aparição repentina, outra senhora se aproxima e, me olhando fundo com um leve sorriso, me pergunta: você sabe o que há nesse muro? Imediatamente percebi que não poderia dizer que sim, a indagação era intimidadora. Após ouvir seus relatos que iam de quando aquele muro era a primeira construção numa paisagem inóspita até ser usado como ‘altar’ para as missas ali celebradas quando ainda nenhuma igreja existia, me mantive ainda mais estático diante da parede que já me fascinava, mas que agora adquiria outro sentido: aquele muro revelava que as construções também podem ter alma.

(Visitado em Maio/2005)


O Tempo | Peines del Viento

“Observei esta manhã, com muita atenção, um pedaço de cristal e cheguei a acreditar que se mexia, que se transformava, que vivia. Não será isso mesmo? Quão distante está ele do tempo de uma flor”. (Eduardo Chillida). Diante da extensão infinita do mar, três pequenas peças desafiam o tempo e as forças que nos regem. Três garfos retorcidos resistindo à violência fatal dos ventos e das ondas eternas do mar. Três pentes incrustrados pela mão humana em rochas impenetráveis. Três obras cuja matéria oxidada igualmente persiste à transformação inevitável dos elementos. No entanto, nada passa incólume pelos rastros do derretimento lento que tinge as pedras que os sustentam. Assim, a tentativa se consuma, e cada um destes ínfimos pregos cravados no tempo levará o mesmo tempo que as rochas, que o mar, que os ventos e que as ondas para desaparecerem. Ali estava eu, insignificante, diante da prova do que até mesmo um ato humano pode alcançar.

(Visitado em Julho/2006)


O Silêncio | Filarmônica de Berlim

Estamos habituados a adentrar templos responsáveis por acolher certas dimensões divinas. Por outro lado, porque não admitir que a arquitetura também é capaz de erigir templos para as dimensões humanas? A união entre nossa expressão mais imaterial, a música, e a mais material de todas, a arquitetura, evidencia-me a constatação de Kahn: “uma obra de arte é algo que nos mostra que a natureza não é capaz de fazer o que o ser humano é capaz de fazer”. Neste dia, as formas que impressionavam meus olhos traduziam a concentração homérica de dezenas de músicos e centenas de espectadores. Um templo hermético que, isolando do mundo a alma humana, fazia, por meio dos sentidos do corpo, o espírito ressoar uma introspecção plena. Sentado atrás da orquestra, via a arquitetura em sua plenitude, povoada pelo som e pelas pessoas, mudas, na experiência pura da beleza. No entanto, para mim, foi no silêncio que a cena se consumou: o fim súbito da última nota do último movimento da nona sinfonia de Dmitri Shostakovich, a quem e a qual absolutamente desconhecia, presenteou-me com o espanto, a surpresa, com o novo, o desconhecido, a beleza da descoberta. É este o silêncio que até hoje ainda ecoa em mim.

(Visitado em Outubro/2006)


O Nada | Bramme für das Ruhrgebiet

Já cansado e numa peregrinação sem rumo, perguntava-me a cada minuto, a cada passo que me fazia sentir ainda mais perdido: por que estou aqui? Até esse dia, não acreditava que ainda fosse possível se esconder algo numa cidade, quanto mais uma montanha. Em meio a paisagem anônima, elevei-me em voltas, voltas e voltas ao redor do que não conhecia e sem mesmo saber se estava de fato onde queria. Caminhos de terra sob a sombra de altos pinheiros, subia sem saber para onde. Eis que, à beira de me render a um retorno fracassado, subitamente foram-se os caminhos, foram-se as árvores, foi-se a cidade, foi-se tudo. No nada, apenas ela, a estela de aço, e eu. O conforto era físico: podia parar pois havia chegado. O conforto era emocional: podia olhar pois a havia encontrado. Após a respiração profunda e o contentamento satisfeito, disparo para alcança-la. Por que estava ali? Para ir, para constatar, para voltar. Olho ao redor e entendo onde me encontrava, não apenas em relação ao mundo, mas a mim mesmo. A jornada deixava claro que a consciência do caminho percorrido se tornava assim minha mais profunda memória.

(
Visitado em Setembro/2013)


A Penumbra | Termas de Vals

Era chegado o momento do tão esperado banho noturno. Na porta o aviso deixava claro: ‘pedimos que ninguém fale e se mantenham todos em silêncio’. À meia noite, imerso na água de 36 graus, a luz difusa da lua refletida no branco da neve permitia que caminhasse por entre os grandes volumes de pedra pelos quais havia transitado incansavelmente durante o dia. No entanto, a atmosfera era outra e pouco se podia ver através da bruma criada pelo vapor da água quente junto à temperatura negativa do exterior. Na solidão inevitável da água e da bruma, a respiração do corpo em transe e o olho descansado permitiam as vezes perceber vultos próximos vagando ao redor. Aproximando-me de um deles reconheço meu pai. Olhando para o céu, para a construção, para aquele lugar, para mim, numa ansiedade desmedida e rompendo delicadamente a regra fundamental, soprou-me silenciosamente com lágrimas nos olhos: “esse arquiteto sabia exatamente o que fazer”.

(Visitado em Janeiro/2014)


O Sonho | Assembleia Nacional de Bangladesh

Era intimidadora a violência daquele mundo exterior: social, econômica, militar, urbana. Era inadmissível de todos os jeitos. De fato, como o arquiteto um dia explicou, o que se construía ali era uma fortaleza medieval, guardada por muros atrás de muros. Era esse o lugar que um dia mais desejei estar. Muros, portas, barreiras, pontes, corredores e vazios. Após transpor cada um deles já num deleite arquitetural sem precedente, encontrava-me então diante da pequena porta que me levaria ao centro da fortaleza. Pelo acaso, estando o parlamento vazio, permitiriam meu acesso e de minha esposa, desde que acompanhados por dois soldados de farda marrom e armados com armas e olhares. Deixei que todos entrassem antes e solitariamente transpus a pequena porta ao lado da plenária central. Chegava no lugar devotamente sonhado: seria pretencioso descrever o indizível. O que posso dizer é que, naquele dia em Daca, aqueles dois homens possivelmente não tenham entendido porque eu chorava tanto e porque os agradecia fervorosamente. Mas quero crer que tenham percebido que aquilo que protegiam, aquele lugar, aquela arca, aquela arquitetura, alcançava para alguém a condição de sagrado. Espantavam-se, talvez, com a possibilidade simples de se emocionar.

(Visitado em Janeiro/2016)


Título: Cenas Arquitetônicas
Autor: Daniel Corsi
Ano: 2017

Texto escrito originalmente para a Mesa Redonda “Saberes Profissionais na Relação Arquiteto Professor e Professor Arquiteto” composta pelos Prof. Dr. Ana Gabriela Godinho Lima, Prof. Ms. Daniel Corsi, Prof. Dr. Lizete Rubano, Prof. Dr. Rafael Perrone. Parte das comemorações dos 100/70 anos da FAU Mackenzie “Ensino de Arquitetura e Urbanismo no Brasil Presente", evento ocorrido no dia 06/Abril/2017 e coordenado por Christian Michael Seegerer, Fernanda Critelli, Giesse Andrade, Regina Xavier, Roberta Squaiella, Vagner Bordi Magni, alunos do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo FAU Mackenzie.

Legendas Imagens:
1 (Las Arboledas, Cidade do México, México | Luis Barragán | 1958-1961)
2 (Peines del Viento, San Sebastián, Espanha | Eduardo Chillida | 1977)
3 (Filarmônica de Berlim, Alemanha | Hans Scharoun | 1956-1963)
4 (Bramme für das Ruhrgebiet, Essen, Alemanha | Richard Serra | 1998)
5 (Termas de Vals, Graubünden, Suíca | Peter Zumthor | 1990-1996)
6 (Assembleia Nacional de Bangladesh, Daca, Bangladesh | Louis I. Kahn | 1962-1975)

Créditos Imagens:
1 (Zanco, Federica. Luis Barragán: La revolución callada. Milão: Skira, 2001)
2 (Daniel Corsi)
3 (Wang, Wilfried. Sylvester, Daniel. Philharmonie: Hans Scharoun. Tübingen: Wasmuth Verlag, 2013)
4 (Daniel Corsi)
5 (Zumthor, Peter. Robert, Jean. Peter Zumthor: Therme Vals. Zurich: Scheidegger & Spiess, 2011)
6 (McCarter, Robert. Louis I. Kahn. Londres: Phaidon, 2005)

Como citar:
CORSI, Daniel. Cenas Arquitetônicas. Atelier Daniel Corsi, São Paulo, 2017.
<http://www.danielcorsi.com/ensaio/cenas-arquitetonicas>

(Textos e imagens de usos e fins exclusivamente acadêmicos)


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