Daniel Corsi, Ronielle Laurentino, Marcelo Macedo, Paulo Scheuer
(Entrevista com Daniel Corsi realizada por Marcelo Macedo, Paulo Scheuer e Ronielle Laurentino para a seção ‘Com a Voz’ da primeira edição da Revista _F8 OFF, publicada em Novembro de 2013)
_F8 OFF (Ronielle Laurentino, Marcelo Macedo, Paulo Scheuer): Como o arquiteto pode contribuir com a sociedade? Como você trata desta questão em sua obra?
Daniel Corsi (Atelier Daniel Corsi): A primeira reflexão que esta pergunta desperta é, sem dúvida, sobre como podemos contribuir para o contexto em que vivemos por meio de um desejo e uma predisposição para colaborar, participar e concretizar aquilo que, de fato, define nosso ofício como algo a ser sempre destinado a um bem coletivo. Então, em relação aquilo a que nos dedicamos, acredito que deva haver num primeiro posicionamento um senso intrínseco do que pode ser para todos.
Atrelado a isso me vem à cabeça um lindo poema de Vinícius de Moraes chamado ‘O Haver’ e que fala sobre um certo desejo pessoal incontrolável e desmedido de ser útil, de contribuir, colaborar e fazer com que acima de uma existência individual nossa boa e digna, sobressaia um dever para que todas possam sê-lo. Essa é uma postura em relação ao mundo que inicialmente transforma de maneira muito válida e singular nossa capacidade de pensar e de construir coisas, construir possibilidades de vidas, contribuições com tudo o que está ao nosso redor, seja através da consciência ou de realizações da matéria física edificada. Acredito que, acima de tudo, deve prevalecer uma consciência em relação a esta condição. Deixar-se pautar por esse desejo e essa vontade autêntica de fazer com que nossas realizações sejam embasadas sobre aquilo que é o outro - algo que no mundo contemporâneo é muito excepcional. O contexto histórico em que vivemos no Século XXI e que tem uma memória recente em relação a tudo que aconteceu no século anterior é extremamente singular e radical. Ter o Século XX como um passado no qual quase tudo aconteceu constituindo uma “Era dos Extremos” e que, por vezes, transcendeu os limites do humano, como aponta Eric Hobsbawm, deveria fazer com quem sua totalidade fosse lida, entendida e interpretada constantemente. Os debates que temos não deveriam ocorrer de modo condicionado pelo que representou um dia esse predomínio do progresso, da razão e da técnica. Isso tudo já vem sendo repensado e nos evidenciando um fato incontestável: vivemos num momento histórico extremamente crítico conduzido por ideias e valores frágeis que, se regidos por uma perspectiva mais generosa, poderiam que contribuir muito para, minimamente convivermos de modo mais humano.
Acredito na importância de nosso posicionamento colaborativo estar profundamente embasado sobre uma compreensão do que é a contemporaneidade. Em que mundo vivemos hoje? Queremos contribuir para a sociedade, queremos fazer com que nosso trabalho seja de um interesse comum, de uma presença ampla e pública, mas como podemos transformar o nosso trabalho e ter o mínimo de segurança de que nossas decisões e nossas proposições estejam em sintonia com o mundo contemporâneo? Com isso entendo que precisamos, prioritariamente, compreender o que é essa contemporaneidade e, logo de início, que ela também não é estática. Ela é mutante, cada vez mais transitória, o que torna tudo ainda mais difícil para pensarmos nossas propostas a partir de uma condição social, cultural, econômica, onde tudo é muito frágil, tudo é muito volátil e tudo é muito rápido. Dentro deste contexto, de certa maneira, a Arquitetura representa em muito um desejo de permanência, um desejo de ordem, de que ela em si seja um referencial além dessa fugacidade que vemos imperar em tudo no mundo. A Arquitetura é um balizador ou um elemento referencial que pode representar uma noção de valores dentro dessa enorme esfera de energias e fluxos de comunicação e informação na qual vivemos hoje, podendo colaborar um pouco para o próprio entendimento do mundo. Para contribuirmos para a sociedade temos, inicialmente, que conhecê-la, entender que condição é essa que nos cerca e sobra a qual agimos. Os últimos trinta anos viram nascer uma série de pensadores que vem buscando compreender esse quadro. Pensadores que muitas vezes não fazem parte de nosso universo da Arquitetura, mas que, por não haver dúvida que esta se faz intensamente presente em tantas coisas, consequentemente também falam sobre ela. Sobretudo, são pessoas que pensam num âmbito mais filosófico relacionado ao que é o entendimento do mundo. Cada vez mais isso deve fazer parte do que é o nosso estudo, do que é a nossa postura enquanto arquitetos, pois dessa lucidez dependemos para podermos contribuir. Devemos estar preparados! Isso traz à luz uma questão de suma importância: a consciência da responsabilidade. Como falei do sentimento de Vinícius de Moraes, acabamos por atribuir espontaneamente a nós mesmos uma responsabilidade. Que responsabilidade é essa? Que consciência temos sobre esse dever? Precisamos conhecer a fundo essa complexa condição de modo a nos sentirmos plenamente aptos a agir. Assim como podemos gerar grandes contribuições, podemos também provocar resultados contrários. Portanto, precisamos sempre considerar todas as consequências de nossos atos pois a influência e a importância que tem nossas ações nesse contexto é imensurável. A visão do arquiteto como um revolucionário que pode mudar o mundo através de si mesmo não se justifica da mesma forma como antes. Isso já foi revisitado e reinterpretado, o que é muito positivo, pois não significa que passamos a nos abster dessa responsabilidade, pelo contrário, talvez ela apenas tenha se transformado, assim como se transformou o mundo. Mas a consciência sobre essa possibilidade de ação é muito importante. Enfim, qual é nossa responsabilidade? Ainda me referindo a coisas que estão além da Arquitetura, pergunto-me como esse aparato enorme que precisamos ter, ou seja, uma compreensão filosófica, social e antropológica das coisas, pode fazer com que sejamos um pouco mais humanos, que nos tornemos um pouco mais humanistas em nossas ações. A Arquitetura é uma parte disso tudo, ela é um fragmento, ela é muito importante e única, mas não é autônoma. Que tal pensarmos sobre isso também? Ela faz parte de um enorme sistema de culturas, de manifestações, de expressões, de concretizações de ideias, de posicionamentos sobre o mundo, etc. Esse conhecimento é muito importante e ele vai além da Arquitetura. Acredito eu que essa busca mais ampla pode nos ajudar a entender, sobretudo, a própria Arquitetura em sua completude.
O que acontece hoje neste em nosso campo de ação? Quando sintetizamos num ato arquitetônico questões relacionadas à cultura, linguagem e expressão, seja através de um repertório, de uma intelectualidade, de uma memória ou de uma compreensão histórica, deixamos ali impresso um desejo de contribuição coletiva, tendo presente em nossa ação um desejo além do pessoal. O ato do arquiteto se dá por meio de um indivíduo que invariavelmente faz uso da expressão de sua própria linguagem para se concretizar. Uma manifestação única podendo ser entendida até como uma atitude predominantemente artística na essência da palavra. No entanto, isso é apenas uma parte da totalidade de sua ação, ou seja, a decisão sobre esses critérios é pautada por outros valores que implicam na compreensão do contexto em que intervirmos hoje e do significado de se agir sobre uma paisagem urbana. É necessário nos concentrarmos sobre o que é o contexto da vida atual e do último século, sobre a concentração das grandes cidades e do acontecimento dessa convergência incontrolável de indivíduos que vivem juntos numa certa saturação do que hoje é esse mesmo convívio. Vivemos em São Paulo, uma cidade absolutamente crítica neste aspecto, com todas as contradições, os extremos e as diferenças. Para entendermos o que essas ações irão configurar ou que papel poderão assumir é necessário pensarmos sobre que tipo de cidade é essa, a que tipo de vida e condição de existencial estamos expostos?
Aliado a isso o valor cultural de nossas propostas passa a ser muito importante no momento em que a arquitetura assume um caráter de representar, de gerar identidade, de permitir que os indivíduos se reconheçam no contexto ondem vivem, caso contrário, a perda do vínculo entre alguém e aquilo que o cerca, tenderá a torna-lo ainda mais solitário do que já é por si só. Nós somos definidos por uma condição fundamentalmente solitária, eu nunca sei o que se passará na cabeça de outra pessoa. De fato, isso é impossível. Da mesma maneira que eu não posso ter a menor exatidão da alegria ou da tristeza que uma pessoa está sentindo, não posso sentir precisamente aquilo que ela sente, o outro é muito distante da gente. Portanto, aquilo que compartilhamos, seja o pensamento, o sentimento ou o que de fato é construído e material como é a Arquitetura, deve considerar esse significado, o que isso constrói como significado para o outro, para o coletivo. Isso é o que importa. Talvez seja isso que venha ser uma das principais possibilidades que possamos ter de participarmos minimamente da construção do que é essa vida do outro. Se pensarmos na condição contemporânea da sociedade, onde se encontram esses signos, esses elementos de identidade, esses elementos balizadores que dão um pouco de sentido, segurança, conforto, à nossa existência? Pergunta esta que a filosofia já se faz há séculos. A Filosofia do século XIX constatava esse drama do que é a existência que depois Jean Paul Sartre iria sintetizar de uma maneira extremamente forte e objetiva: ‘estamos condenados a ser livre’. Onde mora essa liberdade? Se posso decidir sobre aquilo que penso, sou e quero, a partir de que critérios podemos explorar a liberdade que temos nosso pensamento como arquitetos? O arquiteto tem sim muita liberdade se quiser, e talvez seja este o primeiro ponto crítico sobre as nossas ações. Falamos muito sobre o “papel em branco”, sobre como é espantoso o momento em que nos defrontamos com um universo total de possibilidades. É nesse ponto que começa a existir um processo que não é tão ‘em branco’ assim e que pode conter muitas informações.
_F8 OFF: Podemos entender isso como uma necessidade de construção de um repertório?
DC: Exatamente, o repertório e a leitura sobre o mundo, ou seja, como enxergo esse tal ‘papel em branco’ e como, antes de qualquer proposição ou ação, vou desenhar primeiramente nesse papel não a Arquitetura, mas as condições sobre as quais vou agir a partir da maneira que leio o mundo. Essas condições voltam a ser aquelas que disse antes: o contexto, o lugar, a cultura, a tecnologia, a sociedade, o indivíduo e que trazem consigo o ‘conteúdo humanista’ sobre o qual temos de nos embasar da maneira mais sensível em relação a essas questões. Voltando àquilo que falava anteriormente na tentativa de entender um pouco o contexto crítico no qual trabalhamos hoje, se analisarmos a cultura podemos entender que, talvez, ali esteja um dos elementos mais radicais da contemporaneidade e que nos apresenta, num primeiro momento, um universo infinito de coisas capazes de ajudar a nos formarmos como seres e indivíduos. Só que esse universo passou a ser absolutamente fluido, passou a ser líquido como fala Zygmunt Bauman. Portanto, como me encontro nesse enorme plasma de possibilidades do que posso ser? Hoje não temos referenciais. Não temos apresentados para nós, sobre a questão educacional e cultural dos valores sociais, critérios que, minimamente, nos situem numa relação do que é viver a partir de um sentido, seja qual for o sentido dessa existência. A cultura demonstra bem isso: quando estudamos a relação do valor da imagem, onde tudo passa a ser superficial, aquela imagem não mais transmite de fato um conteúdo concreto e real. Ao contrário, é apropriada pelas pessoas que veem nessa imagem unicamente aquilo que aparenta ser e as aparências assumem papéis extremamente perigosos nesse aspecto: aquilo que você ver, aquilo que você enxerga, não necessariamente é aquilo que aparenta. Portanto, a nossa condição coletiva e social é essa, daquilo que é frágil, superficial, controlado e programado para que a pessoa leia de um certo jeito. Estamos sendo sempre bombardeados por um enorme sistema de manipulação. Se pensarmos no grande volume massificado de pessoas, todas elas se encontram sujeitas a isso. Como enxergar isso? Aqui sim se faz necessário um certo preparo, uma espécie de filtro e espectro que nos permita enxergar isso com um mínimo de clareza e entender como as coisas de fato são e o que se tem por traz dessas primeiras impressões de impacto, espanto, desejo, atração por tudo aquilo que vemos. A transição da modernidade para a pós-modernidade é crucial para esta compreensão. Essa condição pós-moderna em que vivemos e que é pautada pela experiência fugaz, a experiência do prazer momentâneo que nos satisfaz no instante em que acontece. É nesse sentido que reside o mais perigoso: além de desse tipo de experiência nos contentar de certa maneira naquele momento e sanar o nosso desejo ali existente, ela também faz com que não nos preocupemos com o que ela de fato é. Ela existe para isso, também para não nos questionarmos sobre o que são as coisas. Aliás, deseja-se que isso seja assim porque torna tudo muito mais fácil. Esse fenômeno é reflexo de um poder que sempre esteve presente em nossa existência: o controle daquele que sabe sobre aquele que não sabe, pois aquele que sabe sem dúvida nenhuma irá questionar o seu posicionamento e a sua dependência em certos critérios que são impostos a ele.
Voltando à questão que estamos pensando agora sobre a contribuição do arquiteto para a sociedade, se estamos discutindo, se nos predispomos a entender essas coisas e estamos à procura de respostas é porque, de certa maneira, buscamos isso, somos inquietos e privilegiados na nossa preparação e nessa certa consciência sobre o mundo, sobre a responsabilidade de nossos atos. A resposta para como isso pode se tornar arquitetura, como isso pode ser trazido ao nosso âmbito de ação, encontra-se primeiramente na questão dessa consciência. Qualquer ato que façamos tem um impacto e ele pode ser capaz de extrair o sentido real do que pode ser sua existência na sociedade. Nosso posicionamento passa a ser o de confrontar essa realidade. Eu não quero que essas pessoas continuem sendo e existindo a partir de uma condição leviana. Quero contribuir para que sua existência seja mais consciente, mais digna e, consequentemente, livre. Se falarmos sobre cultura, temos que falar sobre como essa suposta liberdade que o grande coletivo tem é muito pequena e também que reflete uma condição frágil da pós-modernidade. O que ela nos estabelece? Você pode escolher ser o que quiser. Não existe mais a força de um ideal único que balize tudo, inclusive nossos valores, ou seja, nós todos não somos mais modernos unicamente, podemos escolher dentre uma infinidade de ideologias, religiões, culturas. Tudo é plural e diverso. Se pensarmos, essa liberdade não é tão livre assim, pois também somos condicionados a escolher certas coisas: é como nos déssemos opções, mas estando todas condicionadas por um sistema maior. A partir disso, nos posicionamos para que a arquitetura não faça parte desse sistema e que possa apresentar possibilidades mais sinceras e distantes desses interesses e manipulações que tem como objetivo outras coisas que não a ideia de uma ‘boa vida’, de um bem-estar e de um convívio dos quais as pessoas possam desfrutar numa boa maneira de se viver. Através da leitura daquilo que nos envolve, acabamos por assumir uma postura avessa ao que é predominante. Por outro lado, não devemos apenas entender esse contexto crítico segundo uma interpretação tão agressiva quanto ele mesmo é conosco. Ou seja, esse enorme sistema do qual estamos falando apresenta, de certo modo, suas qualidades, benefícios e aspectos que também devem ser lidos e apropriados por nós. Não é que tudo tenha de ser negado, pelo contrário, tudo deve ser interpretado, mas a partir de outros critérios pautados, acima de tudo, sobre um bem-estar coletivo. Estarmos sempre em busca de uma compreensão maior do mundo de modo a nos sentirmos mais preparados para exercermos nossa responsabilidade é parte basal do nosso ofício. Uma condição de inquietude capaz de nos manter em busca de leituras, interpretações, reflexões, hipóteses, respostas e entendimentos sobre tudo isso que nos envolve. É nesse ponto que chegamos a uma outra questão fundamental: a ética. Onde se encontra nossa consciência sobre a postura que assumimos em nossas ações no mundo? Qual a ética que nos conduz em nossas decisões? Na Bienal de Veneza ocorrida no ano de 2000, o italiano Massimiliano Fuksas, responsável pela curadoria, intitulou aquela edição de uma maneira muito precisa, sintetizando no mote “Mais ética menos estética” uma série de questões próximas dessa visão a que estou me referindo. Quais os valores para além da imagem, do apelo da percepção, das coisas que propiciam experiências a partir do espanto e do encanto? O que há por traz de tudo isso? Onde se encontra a ética que devemos instituir em nossas ações? Ao menos da forma que eu entendo e das análises que estamos aqui construindo, acredito serem estas questões imprescindíveis para discutirmos sobre a profundidade de nosso posicionamento perante o mundo.
_F8 OFF: Com relação a pensar em suas atividades em função de contrariar aquilo que é colocado em relação ao público, à cidade. O sistema vem trazendo e oferecendo às pessoas a possibilidade de utilizar e querer usufruir do espaço, o ponto dos condomínios e da relação que as pessoas acabam tendo com a ‘urbes’ culmina na perda do significado do que é a cidade, aceitar e viver com o diferente, enfim. Em função do quadro em que vivemos, é possível afirmar que a sociedade sabe o que precisa, ou que ainda tenha consciência do que significa a cidade, elas sabem do que precisam? Por exemplo, o que vemos no cenário público, político e social do nosso país é que as pessoas estão indo para rua de forma ordenada e desordenada, elas sabem que precisam de alterações e mudanças, mas simplesmente falam: ‘educação’, ’saúde’, ’cultura’, preciso, eu quero isso! Mas o significado consciente existe?
DC: A Arquitetura está sempre muito sujeita a outras coisas, o que configura um de nossos grandes dramas. Como lidamos com uma escala muito ampla e que envolve uma série de condicionantes políticas, econômicas, culturais, entre outras, ela está igualmente sujeita a cada uma delas. Desse modo, podemos extrair uma questão crítica relacionada ao que podemos realizar e como podemos contribuir. Quando você pergunta se as pessoas sabem de fato o que querem, talvez elas não tenham e nem tenham que ter a consciência precisa do que significa e de como se pensa ou se desenha uma cidade. No entanto, estou certo de que mesmo elas não possuindo a consciência exata sobre esses processos técnicos, são plenamente capazes de dizer o quanto se sentem bem ou não, se algo é aprazível ou não. Basta perguntar hoje a qualquer pessoa em São Paulo sobre a relação que tem com a cidade. É uma relação muito crítica, uma relação de amor e ódio. Se isso é o que prevalece, algo não está bom. Por que tenho essa relação tão agressiva com o meu próprio dia-a-dia? Por que o meu desejo as vezes é comum? Acho que nossos desejos são diferentes, mas enfim.... Numa rotina diária as pessoas se transladam de um ponto ao outro tentando fazer com que isso aconteça da maneira mais rápida possível, não querendo ver o que acontece nesse trajeto e se distanciando cada vez mais do que é a realidade da paisagem, essa realidade urbana simbólica em sua essência. Detectar isso é um sinal de que algo não está bem. Você pode ouvir uma pessoa e ela talvez não descrever de maneira absolutamente científica esse quadro, mas facilmente dirá: “eu odeio levar três horas para ir ao trabalho. Passo pela periferia e vejo uma paisagem assim, um indivíduo morando na rua sem nenhuma possibilidade de progredir. Do mesmo modo eu também não tenho nenhuma possibilidade de contribuir pois sou extremamente limitado nos meus recursos, trabalho para sobreviver.” Não é necessário se tornar um especialista para se dizer isso, para se perceber esse tipo de coisa. Isso está em todos, assim como as coisas boas também estão. O que é triste e desesperador é notar essas questões se ausentarem e não serem mais percebidas pelas pessoas. Eis onde reside essa condição crítica. Onde, por exemplo, morando em uma cidade murada eu ache isso normal e não tenha mais a percepção de que, talvez, eu mesmo esteja passando a viver numa condição ‘murada’ e extremamente solitária. Quando minha vida é essa do trânsito entre condomínios e shoppings, alguma coisa está errada. É preocupante notar quando as pessoas não percebem minimamente essa condição em que vivem. Isso que é perigoso. É nesse momento que deve aparecer a capacidade de reflexão que devemos ter e que podemos encontrar numa infinidade de outros pensadores. O José Saramago tem um livro chamado ‘A Caverna’, que fala substancialmente disso. Quando o li pensei: “esse é um livro para arquitetos”, pois fala fundamentalmente dessa relação entre individuo, sociedade e como o espaço que é construído ao redor dessas pessoas afeta invariavelmente o valor que elas denotam à própria vida e às suas próprias relações. Como já disse antes, as pessoas são levadas a não pensar sobre isso. Inclusive, não se deseja que elas reflitam mais, e quando vemos predominar este tipo de coisa, revelam-se perigos extremos. No fundo, esse sintoma que, talvez, seja hoje dos mais preocupantes e emergenciais a serem cuidados, não é o de mostrarmos às pessoas o que é uma cidade ideal ou como se deve viver. Não. Acredito que o mais importante seja fazer com que, minimamente, elas se lembrem dessa questão, pois não é algo novo. Basta, às vezes, serem lembradas de experiências que elas mesmas tiveram e tem com cidade e que, inconscientemente, serão capazes de revelar a importância desse bem-estar.
_F8 OFF: Fala da arquitetura como ponto de inflexão...
DC: Sem dúvida nenhuma. E de influência. Ou seja, quando vamos a alguns espaços da cidade de São Paulo onde enxergarmos a existência do coletivo, da possibilidade de se encontrar fora, na rua, conviver no acaso, esbarrar com uma pessoa ali, ver uma manifestação cultural ou política. Você poder viver as árvores que ali estão sombreando, esses são acasos de importância. Não temos isso dentro de um shopping, isto não faz parte de um contexto que ali existe. Falo em shoppings porque me lembra exatamente da questão que o Saramago coloca nesse Livro. Ele o chama de um ‘grande centro’ onde se tem tudo, mas tudo é artificial, tudo é condicionado, tudo é programado. No fundo, revela-se uma necessidade de fazer com que as pessoas se lembrem desses valores naturais. Isso é muito intuitivo e tem muita relação com a percepção que as pessoas têm do mundo. Além disso, é muito difícil você presenciar pessoas que não se sintam bem em lugares e espaços como esses. A cidade realmente carece disso. Cada vez mais vemos o predomínio de outros valores e isso começa a fazer nascer uma espécie de margem. A Avenida Paulista é o nosso centro simbólico de manifestações e de momentos onde queremos falar sobre o coletivo. Por que isto acontece na Paulista? Por que não acontece no Centro ou no Vale do Anhangabaú, um espaço que simbolicamente, dentro da estrutura da cidade, é ou deveria ser mais significativo e importante. Esse tipo de reunião nos fala um pouco sobre todas essas coisas, temos que pensar sobre elas. Vindo para cá hoje, passei por um prédio que está construindo a sua quinta laje e que terá vinte andares. Um edifício próximo à Avenida Nove de Julho e por onde passo quase todos os dias. Já havia visto imagens deste projeto e percebido a sua escala. Mas, agora que essa coisa está subindo, percebi que daqui a pouco não vou mais conseguir ver o céu daquele lugar. É uma fresta onde é possível se ver, minimamente, de que lugar vem a luz. Onde se pode ver o céu. Onde se pode ter o mínimo de respiro em relação ao que é o nosso olhar. Vindo para cá me dei conta de que em breve essa sensação irá desaparecer. Nossos trajetos pela cidade se revelam extremamente críticos neste aspecto, onde cada vez as coisas mais se saturam e nos enclausuramos ao perdermos esse tipo de relação. Já não temos horizonte em São Paulo. Quando subimos em um edifício e enxergamos a uma distância de três quilômetros, é algo espantoso pra nós. O olho muda. Nossa vista descansa. E já não encontramos isso por aqui, é muito raro. É preocupante continuarmos vendo essa sensação cada vez mais comprimida e suprimindo, pouco a pouco, o que são nossos convívios, nossas percepções. Daí surge a questão da paisagem, uma paisagem construída, que faz parte de nossa compreensão e que também nos possibilita a vida. Um lugar onde tenho minhas atividades e minha mobilidade entre as coisas que faço. Mas o que acontece nesses meandros? O que acontece entre uma coisa e outra? Assim como em várias outras cidades do mundo as estruturas de transporte de massa são necessárias em função da escala e do número de pessoas que encontramos vivendo juntas. Mas o que é um percurso de metrô? O que realmente significa? Aquilo é quase uma cápsula de tele transporte! Você entra em um ponto e sai em outro sem ter a menor noção sobre o que aconteceu no meio do caminho. Ela é fundamental para nossa condição contemporânea, mas o que acontece quando você está fora dessa cápsula? O que você encontra? Acredito não ser possível vivermos em um contexto onde tudo é assim, fechado, onde você não tem uma relação de consciência sobre o que está fora, sobre o lugar onde você passa a maior parte do seu dia. É realmente necessário que exista a ideia do acaso. Deve existir o mínimo de fração de tempo para que possamos nos sentar em um banco de uma praça e olharmos, seja para a arquitetura ou para as pessoas. Acredito ser aí onde encontramos a Arquitetura. Ela, sem dúvida, faz parte disso como um tipo de paisagem. Uma paisagem não só para ser contemplada, mas, principalmente, para ser vivida. Onde as coisas acontecem?
Acho que me adianto à uma de suas perguntas.
_F8 OFF: A arquitetura existe antes de ser construída e de que modo?
DC: Creio que arquitetura existe no olhar das pessoas, não só por meio da construção física e real do que a configura como edifício, mas como a construção simbólica de um lugar para que as coisas aconteçam. A arquitetura é um lugar, é ela que funda essa condição, e o faz de modo coletivo. Por isso ser tão importante a relação que temos com a cidade, pois não são um ou dois edifícios que a compõe, mas todos que existem. Portanto, tudo isso constrói ‘lugar’. É essa a dimensão da nossa responsabilidade. É essa a intensidade com o qual influenciamos a vida do outro. Se deve existir um aspecto primário em tudo que se pense ele é a ideia da memória. Se inicialmente estávamos falando de referenciais, se temos ou não cada vez menos pontos de referência, sejam eles de inflexão ou influência e que nos situem um pouco no tempo e no espaço, devemos lembrar um pouco das nossas próprias experiências. Quais são elas? As coisas sempre carregam uma noção de tempo, um ‘quando’ e, também, um ‘onde’, um lugar onde as coisas sucedem. Assim, o lugar é Arquitetura. Ela é concebida através de algo mais do que um pensamento arquitetônico, mas também através de uma existência arquitetônica. Acabo de falar sobre a Avenida Paulista. O que ela é? Antes, ela não acontecia ali. Inicialmente, aquele sítio era apenas o topo de uma colina natural, uma situação geológica. Mas, ao longo de cem anos, essa situação foi transformada num lugar a ser apropriado pela sociedade, pelo ser humano, seja por uma pessoa que ali caminhe sozinha e observe seus edifícios, seja pelo o acúmulo de grandes massas que vão ali falar algo, potencializado, por exemplo, pelo vão do MASP (Museu de Arte de São Paulo) que, além disso, preserva a ideia de olhar para várzea o horizonte da cidade. Portanto, por que isso acontece na Avenida Paulista? Porque ela foi e continua sendo construída há mais de 100 anos. Isso implica numa ideia de memória, numa ideia de referenciais dentro de nossa própria existência. Referenciais de como eu me formei, o que é ou não importante para mim, o que gosto ou não gosto, o que me faz sentir bem. A ideia de memória é de extrema relevância quando nos damos conta de um contexto contemporâneo onde a última coisa que se quer é a persistência de algo, pois se tenho um carro hoje, sou estimulado constantemente para que no ano seguinte tenha outro mais novo, assim como uma simples camiseta ou um tênis. Perante isso, o que é o mais preocupante é como isso afeta as pessoas perante elas mesmas, fazendo com que troquem tudo, inclusive até a si mesmas. Isso é perigosíssimo. Anula-se a ideia de memória e de permanência tornando tudo muito frágil. Como eu falei no começo, a Arquitetura é sim um ponto de referência e um ponto de permanência em toda essa história que construímos durante nossas vidas: passar por um lugar quanto se tinha dez anos e voltar a fazê-lo com vinte ou trinta anos e se lembrar disso. Talvez esse lugar não seja o mesmo, mas você esteve ali, assistindo, vivenciando e participando de sua transformação. É quando isso acontece que temos Arquitetura. Ela faz parte desse espectro, dessa configuração da memória da vida de todos. Por isso a ideia de como a Arquitetura se comunica com as pessoas é muito importante. Como ela se torna edificada e como as pessoas se apropriam de sua presença. Em São Paulo temos exemplos belíssimos disso. As construções históricas, por exemplo, se olharmos para o Teatro Municipal, o Viaduto do Chá, a Praça da República, cada um deles é um referencial para muita gente, pessoas que os vivenciaram. Eis mais uma questão a ser colocada: o que queremos que as pessoas vivenciem enquanto estejam num lugar? Isso não implica em determinar o que elas vivenciarão ali, mas permitir que elas mesmas decidam o que querem viver ali e que possam viver algo bom.
_F8 OFF: Como arquitetos, nós oferecemos as possibilidades...
DC: Acredito que sim, a leitura é um pouco essa. Podemos oferecer oportunidades desse tipo de experiência. Quando visitamos a Marquise do Parque do Ibirapuera e notamos sua simplicidade, o que isso significa? É uma mera cobertura. Mas, diante do absoluto predomínio dos fenômenos naturais aos quais estamos submetidos, ela é a mais perfeita definição da ação mínima e elementar de um ato de projetar. Se chove ou se faz sol, ela está lá. É a essência do que é a Arquitetura: a ideia de acolhimento. A Marquise é um abrigo, só que dentro disso ela apresenta uma infinidade de oportunidades. Isso que é mágico. Será que o Oscar Niemeyer teria pensado que, a partir de um determinado tempo, ali poderia haver uma série de pessoas andando de patins ou skate? Seguramente não pensou nisso, não especificamente, mas talvez tenha buscado imaginar um lugar que pudesse acolher, precisamente, o imprevisível. Um espaço que fosse mais aprazível tanto para uma pessoa como para todos! Portanto, a sua Arquitetura se torna um suporte, um meio para que a vida aconteça, para que o encontro aconteça. Não há nada mais maravilhoso do que a assistir isso que estamos falando em lugares como esses. Às vezes são pessoas ao redor de espelhos d’águas, sentadas em cadeiras e bancos olhando umas para as outras, uma lendo um livro, outra uma criança brincando, outra um velhinho que ali vai tomar um pouco de sol pra se sentir bem. Ou seja, que espaços são esses? Por isso que nessa leitura a noção social das coisas é igualmente importante. Alguém pode ser capaz de ir a um lugar desses e perturbar essa condição, indo contra ao que ali é proporcionado. Alguém que queira contrariar essa dinâmica será recebida de outra maneira pelos demais. Não é dessa maneira que se poderá alcançar a oportunidade de se construir esse lugares, esse convívios. Imediatamente isso se transfere para o interior dos edifícios. O que acontece quando essa memória a que estamos nos referindo como urbana, coletiva, pública, ampla, se traduz para uma escala menor? É a mesma coisa! Onde você viveu quando tinha cinco anos? Como era a sua casa? Como eram os dias? Que lembrança tem daquilo? Que memória preserva? Isso é determinante para a construção do significado de seu espaço de vivência, sua casa, o lugar onde reside e que, digamos assim, é seu lugar no mundo. Até o momento em que passa a ter experiências singulares, quando começa a se formar dentro de uma escola ou a partir de eventos específicos, seja quando vai a um teatro, um museu, um circo, etc., tudo isso já configura uma outra escala referencial, mas que ainda nos faz continuar falando sobre lugares. Um quarto é um lugar, um lugar seu e que também tem atrelada uma ideia de memória, de construção dos sentidos que temos. Isto é Arquitetura.
Voltemos a nossa realidade paulistana onde imperam os empreendimentos imobiliários nos folhetos de jornais. Que lugar é oferecido para as pessoas criarem seu próprio universo? Como essa ideia de construir um lugar, independentemente de seu tamanho, de como seja, de onde esteja, ajuda a nos tornar mais humanos, de modo a compreendermos e criarmos um certo sentindo para a nossa vida? Que espaço é esse? O que será dessa criança que não pisa na rua? Porque ela sai do condomínio, vai para a escola, volta e vai para o shopping. Ela não conhece a rua. Então, que universo esse indivíduo possuirá quando ele tiver quinze, trinta, quarenta anos? Isso é muito preocupante porque para o sistema do consumo, para o predomínio dos valores econômicos e capitais isso não interessa, não é a prioridade. É isso que, nas últimas décadas, estamos desesperadamente tentando mudar, tentando fazer com que não desapareça. Claro que isso faz parte de nosso contexto de crescimento, sem dúvida também questionável, mas existem pessoas e essas pessoas tem que morar, tem que viver. No entanto, como fazer com que isso aconteça de maneira mais digna? Por mais que essas pessoas não tenham essa consciência, todas continuam sendo afetadas pelos lugares em que vivem. Eis a oportunidade exata do quanto e onde que podemos contribuir. Isso nos leva a entrar numa questão muito relevante de como a Arquitetura é sujeitada a uma série de implicações e que, para além de nossa pré-disposição, vontade a responsabilidade sobre isso, às vezes nossa capacidade de ação é muito pequena diante desses outros elementos. Mas, ainda que ela possa ser intimidada por isso, acima de tudo, é a persistência que fará com que nós, grandes colaboradores dessa reflexão toda, jamais nos acomodemos. O sistema é lento, suas condições são complexas, temos que nos manter fortes em relação a essa posição, sempre com critérios muito firmes de otimismo e esperança capazes de nos moverem adiante. Devemos pensar que a cada dia vamos construindo alguma coisa, colaborando de alguma maneira, não só através do que é uma construção, mas por meio das conversas com as pessoas e do contágio que o nosso pensamento de arquitetos propiciar nesse aspecto.
Retomando algumas questões que discutimos, podemos nos perguntar: a Arquitetura existe antes de ser construída? Arquitetura é só aquilo que é construído? Acredito existir também o pensamento arquitetônico, uma postura que pode fazer parte desse contágio. Também podemos fazer com que as pessoas mudem ou entendam as coisas de outra maneira ao mostrarmos exemplos do que temos na cidade. A coisa não é tão abstrata assim. Temos lugares maravilhosos em nossa cidade. A questão é entender e saber como olhar. Compreender como, de fato, aquilo pode fazer parte de nosso cotidiano. Isso faz parte do que é o exercício da Arquitetura, nosso posicionamento como pensadores, como pessoas que querem compartilhar um certo entendimento que, por sua densidade, pode ser muito lúcido. Temos um privilégio muito grande de falarmos sobre essas coisas, de estarmos preocupados com elas e de querer fazer com que esse contexto mude e melhore. Muitas vezes nossas proposições não se concretizam fazendo com que a Arquitetura não alcance o âmbito da realidade como prova construída e materializada. Que a Arquitetura se torna plena quando passa a existir concretamente não há dúvida, mas tudo que vem antes disso também faz parte dessa construção: o pensamento e a intenção arquitetônica. Mesmo sendo somente projeto é capaz de construir reflexões muito profundas. Talvez sirvam para outros influenciando como uma referência ou investigação. Uma pesquisa para outras pessoas que vão se apropriar daquele projeto e dizer: que excelente pesquisa fez, agora podemos dar mais um passo! E, quem sabe, esse próximo passo seja a sua realização, sua materialização e construção. O importante é ter claro que esses projetos também constroem memórias. São pensamentos, reflexões. Acredito que a Arquitetura existe sim em inúmeros âmbitos, não só o da construção edificada ou materializada, mas também na postura do arquiteto, na influência que tem sobre tudo aquilo que o envolve, seja no âmbito da cidade, da vizinhança, das ruas, das pessoas com que convive, do exercício diário do ensino da Arquitetura e também da postura mais propositiva de se concentrar em propostas projetuais que talvez não saiba se serão realizadas ou não, mas integram o pensamento. A História da Arquitetura mostra a importância que tem essa nossa inquietação, de não só esperarmos aquele convite para contribuir, mas, pelo contrário, estarmos a frente disso. Nosso caráter de proposição tem que ser muito mais atrevido nesse aspecto, deve ser mais amplo e pré-disposto. Acredito que no momento em que estamos fazendo um projeto, tendo discussões, surge uma questão importantíssima que é a da coletividade. A Arquitetura deve se abastecer muito de outros conhecimentos. Isso nunca foi tão possível quanto hoje através da acessibilidade às formações, informações e comunicações que temos disponíveis. Mas a primeira convicção é a de que nós não podemos pensar as coisas somente a partir do nosso próprio conhecimento. Ao contrário, temos que ter uma série de companheiros dentro dessa nossa discussão, todos contribuem, todos são imprescindíveis e fundamentais. Precisamos dessa postura colaborativa, de um coletivo dentro e fora da Arquitetura, ou seja, um coletivo onde seria muita pretensão, você como arquiteto, imaginar ser capaz de pensar tudo sozinho. Mesmo porque isso talvez nem seja interessante. A Arquitetura suscita diálogo. A Arquitetura é diálogo. Ela é uma troca, uma reflexão sobre visões. Então que se faça isso dentro da arquitetura, entre arquitetos e também com uma equipe muito maior. Não existe projeto que se desenvolva sozinho, que se conceba de uma maneira solitária. Isso pode ser empobrecedor para um processo que clama por muito mais cabeças, por muito mais visões, discussões e, acima de tudo, reflexões. Há uma necessidade de que o mundo seja ouvido, interpretado, acolhido por nossas intenções. Todo o aparato que está fora da Arquitetura devemos fazer com que faça parte dela. Por outro lado, poderíamos dizer: Não, isso não é necessário, isso não faz parte de nosso pensamento, mas pelo contrário, adoraria contar com visões de filósofos, sociólogos, antropólogos, para tudo o que fazemos. Seria extremamente enriquecedor. Esta consciência já temos.
_F8 OFF: Nessa construção da resistência da dignidade humana que você coloca, acha que a faculdade, a universidade, esse conhecimento acadêmico, hoje corresponde a essa construção, eles reconhecem essa leitura multidisciplinar complexa que você coloca? Outro ponto: você disse algo sobre além da paisagem construída. Acha que o arquiteto deveria ser mais político como atuação, não como parlamentar, mas como ser político, uma frente de atuação e de influência? Ainda, que lugar da linha do processo político social você acha que o arquiteto deve se colocar hoje para se ter uma arquitetura propositiva contribuindo com a cidade, deve permanecer no fim da linha dando forma a algo já discutido que se deseja enquanto arquitetura e urbanismo?
DC: Na verdade é um conjunto de coisas. Estamos falando sobre dois âmbitos: o primeiro é o da educação e o segundo o de quando ela passa a ser exterior, colocada à prova em um campo de realizações. Quanto ao primeiro, acredito que a formação do arquiteto está sempre em um território parcial, e isso não apenas no Brasil ou em São Paulo. A que se dedica essa formação de pessoas? Estamos falando objetivamente do arquiteto, mas poderia se aplicar a uma série de outras práticas. Como falamos ao longo da conversa, algo importante nesse aspecto é que existe um contexto predominante, existe um contexto que determina uma série de condições a serem estabelecidas: quem está sendo formado e se iniciando nesse universo, está sendo preparado para depois atuar. Logo, que não seja formado sob a óptica dos sistemas vigentes de modo a atender a demanda de suas condicionantes. Quem está sendo preparado, que não seja para ser mais um, uma ferramenta, um elemento, um operário dessa enorme máquina. Pelo contrário, deve ser preparado para intervir nisso, para que se, essa máquina tiver de parar, que pare. Ou seja, essa formação universitária deve ser pautada pela reflexão. Não pode ser uma formação cega, como uma resposta ao mercado que é extremamente predominante pelo que sabemos. Seja quem for, estamos todos sendo preparados para um mercado de trabalho que nos recebe de braços abertos, para fazer o que lhe convir. Lógico, é o que querem aqueles que estão por trás dessas dinâmicas. Mas não é isso que temos que fazer. Temos que questionar o que é esse mercado, isso chamamos de mercado de trabalho, que no fundo é esse grande sistema do qual falamos. O que essa condição dada e estabelecida realmente significa? Qual é o seu significado político, social, cultural? Ou seja, ela tem que ser constantemente modificada, questionada. Foi assim que aconteceu há cem anos e o que acontecerá continuamente. Sempre vivemos em um universo em mutação, presenciando transformações que devem ser positivas, que sejam respostas ao interesse comum. Agora, se saímos como mais uma ferramenta cega para esse universo não estaremos formando humanistas, não estaremos formando pessoas que irão pensar sobre o mundo ou querer contribuir segundo uma ótica mais consciente. Não, estaremos formando mais peças e não é isso que tem que acontecer. A ideia de academia e universidade não se fundamenta sobre isso, mas sobre uma consciência filosófica sobre o mundo. A pessoa que entra numa universidade não o faz para ser doutrinada, mas sim para contribuir com essa construção maior que qualquer instituição. A faculdade é, acima de tudo, um contexto de conversa e diálogo onde todos são ouvidos e do qual se extrai reflexões e não conclusões. É daí que se originam novas propostas, ideias, interpretações sobre as questões que nos circundam. Acredito que essa tenha que ser nossa estrutura balizadora. Não se deve formar o arquiteto apenas como técnico, um técnico em arquitetura, não é isso. Ele deve ser formado como um indivíduo social, um indivíduo que, através do saber da Arquitetura, vai contribuir com o que é o coletivo, com o que é a sociedade, ele deve estar muito preparado, estar com os olhos abertos para enxergar o que existe fora. Tem que reconhecer aquilo que apresenta riscos a esse processo, aquilo que as coisas verdadeiramente são e aquilo que se encontra por detrás das imagens que vemos. Nosso olhar deve ser muito aguçado, muito atento, não pode ser intimidado, não deve ser neutralizado logo de cara. Talvez isso aconteça com muitos por uma série de motivos – não inteiramente condenáveis – que acabaram por ceder ao sistema. Mas, para além disso, existem razões para que possamos optar e, minimamente, ter o direito e a propriedade de, conscientemente, expressar o que queremos, escolher qual caminho seguir. Talvez seja aquilo que traga prazer a uma pessoa, contribuindo para certo tipo de exercício, ótimo! Agora, ela está consciente disso, sabe qual é a consequência desse fato. Se optar conscientemente, não podemos julgar, pois teve a liberdade e a consciência de fazê-lo. Agora passamos a ter que questionar outras coisas, as razões que a levaram a escolher isso. Mas, minimamente, ela deve poder decidir sobre essa questão, enxergar a respeito do que temos nesse universo da Arquitetura. Existem inúmeras maneiras de pensar Arquitetura, sabemos disso.
Junto a isso, existe a questão da política que é igualmente importante. Acredito que o arquiteto deve se envolver no âmbito político, onde ele também não é único. Não adianta, se o mundo fosse inteiro de arquitetos, o mundo não seria melhor. Essa é outra pretensão demasiada. Não é que os arquitetos têm que dominar o mundo e que somos grandes pessoas que compreendem tudo e podemos dar resposta a tudo. Mas podemos sim contribuir, sem dúvida nenhuma. Temos que participar dessa construção política das coisas. Essa construção política também detém mais de um âmbito e não só o âmbito do poder. Vivemos atualmente uma amplificação dessa esfera de participação do arquiteto. No Brasil temos casos de arquitetos que se envolveram fortemente com a proximidade política e governamental, como temos agora na Secretaria da Prefeitura de São Paulo. Isso traz uma esperança enorme de reflexões sobre essas questões que estamos abordando e, ao mesmo tempo, de intervenções políticas resultantes de ações projetuais, de ações de pensar o projeto, de construir. Enfim, isso também é política. Mas é uma dimensão da arquitetura que não se faz apenas através de um posicionamento efetivo nos órgãos de gestão. Não precisamos exclusivamente nos encontrarmos nesses lugares para termos uma posição política. Quando você fala sobre ficar sentado esperando uma encomenda e que ela é fruto de um interesse prévio e condicionado, isso é verdade. A questão é como enfrentamos essa encomenda. Aí vem nosso posicionamento político. Acredito que essa seja uma questão de não apenas esperar que as coisas aconteçam. Nesse aspecto encontramos entra uma série de âmbitos dos quais podemos participar, sejam eles projetos voluntários ou concursos, oportunidades de optarmos entre contribuir para aquilo ou não. Lógico que se deve analisar qual é o concurso, em que condição foi concebido. Mas os concursos são, no fundo, oportunidades que são buscadas pelos arquitetos e são extremamente amplas na sua atuação. Há concursos de inúmeros tipos: desde um pequeno edifício até um plano urbano de grande escala. Você pode atuar nisso e nisso ser capaz de exercer ou evidenciar a postura política que o arquiteto talvez tenha que ter. Há outra possibilidade: o cliente privado, aquele que traz uma oportunidade de projetar. Obviamente ele tem as suas próprias premissas, mas, assim como o estudante não é passivo aquilo que está entendendo como sistema, nós também não podemos ser totalmente passivos a um interesse privado que vai se impor sobre o interesse público. É isso que não deve acontecer. Muitas vezes acabamos por assumir uma série de embates, pois é onde exige a demonstração de nossa força de princípios, valores e prioridades. Em um texto que fala de uma forma muito interessante sobre as condições que temos para calcar nossas oportunidades, Rafael Moneo diz que, às vezes, podem acontecer de modo muito interessante, onde se contemple não só o interesse privado, mas, principalmente o interesse público. Sim, isso é possível. Existe um processo árduo de diálogo, de mudança de opiniões e compreensões de como a ação que ali provém de uma iniciativa privada pode ser ainda mais rica se ela se abrir ao interesse público. Acredito que aí vem a atuação política, fazendo parte, agindo política, social e economicamente. Como disse, não é um posicionamento fácil, mas sim um posicionamento que demanda essa coragem em relação a lhe dar com isso, de saber que haverá confrontos, recusas e que, muitas vezes, não se fundamentará. Mas acredito que nossos princípios devem se posicionar de uma maneira forte e buscar sempre o diálogo, o caminho de compreender as partes. É isso que o Moneo diz. No momento que tenho a oportunidade de construir na cidade uma ideia que pode ser benéfica e pública, não posso anulá-la por ser, inicialmente, de interesse privado. Não posso, pois como arquiteto, estaria virando as costas a essa oportunidade. Devo me predispor a entender as condições e a dialogar com essas pessoas que também fazem parte da construção da cidade. Observe do que é construída São Paulo, a maior parte é da iniciativa privada. É preciso estabelecer esse diálogo. Não é que vamos seguir exclusivamente aquilo que é colocado pelo interesse capital. Não é isso. Mas é importante que encontremos uma maneira de dialogar com essas pessoas e que disso surjam oportunidades, momentos em que a arquitetura apareça.
_F8 OFF: Seja com o cliente, com a equipe ou consigo mesmo, quando o arquiteto cede à concepção própria do projeto em mente?
DC: Primeiramente, é importante primeiro entender que a Arquitetura é um conhecimento construído coletivamente e não uma concepção absolutamente individual. A sua própria pergunta já anuncia uma mudança desse entendimento. Um século atrás essa pergunta talvez não fosse comum. Ela tem uma coerência com o século atual e com o modo que entendemos a Arquitetura hoje. Eu encaro de outra forma. Acredito que nosso trabalho é o de contribuir com um processo muito maior. O projeto excede a nós mesmos e à nossa concepção individual. Com isso, começamos a entender que, na condição contemporânea, se desejamos que essas ações sejam as mais precisas possíveis, é primordial que incorporemos a colaboração de outros em seus processos. A Arquitetura passa a ser pensada como algo multidisciplinar e plural, entendida como uma síntese de conhecimentos. Todo projeto de arquitetura invariavelmente possui uma estrutura plural definida por questões que vão além do aspecto de como se insere num determinado contexto. Temos uma série de outras dimensões relacionadas à cultura, à sociologia, à antropologia, etc. Estes são conhecimentos que devem ser agregados às intensões da proposta arquitetônica assim como outras questões mais pragmáticas e objetivas como as econômicas, políticas e estruturais de território onde está sendo intervindo. A pretensão de que o arquiteto domina e sabe de tudo já foi superada. De fato, dependendo da escala do trabalho que se está realizando, a pré-disposição a um conhecimento amplo deve ser anunciada pelo arquiteto. No entanto, é importante que essa postura também exista mesmo em projetos que não estejam trabalhando diretamente com, por exemplo, um sociólogo. Independente da escala, eu, como arquiteto, devo estar ciente da relevância destes conhecimentos e tentar, com discernimento, incorporar abordagens dessa natureza. Considerando os diferentes níveis de complexidade que existem, tanto nas escalas grandes como nas pequenas, o arquiteto é responsável por buscar uma síntese fundamental, muitas vezes realizada por seu amplo conhecimento ou por uma equipe multidisciplinar presente.
_F8 OFF: O que você diz sobre a concepção e o desenvolvimento do projeto como ação coletiva?
DC: Quando a uma ideia começa a ser construída mentalmente ou num processo de concepção, existe sempre um fio condutor. Mas isso não tira a necessidade de uma equipe multidisciplinar e colaborativa. Desde sempre trabalhei em equipes nos processos de concepção arquitetônica. Isso foi algo que se tornou um hábito de trabalho e o continuo vendo como imprescindível. A Arquitetura é uma disciplina de reflexão, de pensamento. Pensar em fazer isso de modo solitário é possível e respeitável, mas para outros talvez seja mais interessante o diálogo. Pessoalmente sempre tive um envolvimento muito profundo com os lugares onde trabalhei e com quem trabalhei. Isso acabou se tornando a forma como penso o processo. Na estrutura de meu escritório isso já é natural: considerando que somos dois sócios, ao menos duas pessoas estão envolvidas na concepção das ideias, o que descentraliza o papel individual de um arquiteto e o transforma em algo ainda mais enriquecedor. É importante ressaltar que esse fato não exclui a existência de uma pessoalidade na realização do trabalho. Isso se manterá presente na produção. A ideia de um autor não se reconhecer num trabalho coletivo é muito questionável. Dependendo dos trabalhos as coisas vão crescendo ou não. Se trabalharmos em uma escala mais complexa, maior então será a quantidade de pessoas participando das decisões importantes. Isso é muito comum, inclusive em mudar a estrutura do escritório ao chamarmos parceiros externos quando fazemos concursos. Para mim esse convívio é muito importante e vital para que os processos de trabalho e de desenvolvimento resultem em algo bom. Esse período tão rico e intenso da produção de um projeto deve ser muito prazeroso, no sentido que deve ter por si só um gosto muito grande. O processo criativo tem que ser intenso e acabamos por fazê-lo através do convívio e da somatória de pessoas que, concebendo ideias conjuntamente e tornando o processo muito mais instigante.
_F8 OFF: Existem momentos em que você tem que ceder, seja pelo gosto do cliente, orçamento, prazos, etc. O quanto isso é maleável e como você encara esses momentos de impasse?
DC: Isso é delicado. Temos que entender qual é o conteúdo que está sendo colocado em questão. Se logo no início do processo, quando começamos a lidar com a parcela que o está originando e solicitando e quando são determinadas algumas preferências e necessidades por parte do cliente, existirem aspectos que vão contra a postura ética daquilo que entendemos por Arquitetura, estaremos diante de uma condição bastante crítica e pela qual jamais poderemos nos deixar dobrar. Isso é um grande balizador das decisões. Por exemplo, se em algum momento me for solicitado pelo cliente algum critério de projeto que não tenha qualquer sintonia com o que penso, é preciso interromper, pois não posso ir contra aquilo que entendo que é a Arquitetura. Nesse momento existem dois caminhos ou diálogos possíveis: o primeiro é o arquiteto entender aquilo que está sendo dito pelo cliente e não exercer uma postura deliberada, o segundo é o cliente compreender o diálogo que está sendo buscado pelo arquiteto se predispondo a outro ponto de vista. Às vezes o acordo não se faz possível, pois os objetivos são muito discrepantes. Mas quando se faz, coisas muito interessantes podem surgir. O processo de aprendizado é mútuo. Então, não há mais como imperarmos numa visão absoluta do arquiteto idealista e não ouvir o outro. Esse processo de compreensão dos interesses e objetivos do outro passa pelo nosso processo de entendimento. É o ponto onde o projeto se transforma numa bifurcação. Se houver convergência tudo bem. Se não houver, o caminho se tornará frágil. Disso, nascem duas preocupações: será que não fui compreensível o suficiente e para onde essa oportunidade rumará. Pois irá seguir. Irá acontecer. Terá esse cliente entendido um pouco do valor das coisas que estão sendo colocadas? Será que naquilo que ele fizer depois disso, minimamente, será considerado todo diálogo que existiu? Acredito que o arquiteto jamais deva descartar a oportunidade de contribuir. Essa é uma situação muito extrema. Nunca passamos pela experiência de tomar uma bifurcação pelo lado da fratura. Pelo contrário, sempre houve um diálogo muito grande e sempre foi muito rico.
_F8 OFF: Tendo em vista a arquitetura propositiva, acadêmica você acredita que o arquiteto projeta pensando na crítica ou não?
DC: Não sei, não consigo falar por todos. Posso falar por mim e digo que jamais! Essa é uma referência muito volátil e que não acredito que tenha que ser considerada num processo de concepção em absoluto. Fundamentar-se a partir de como o projeto será enxergado num suposto sentido é muito arriscado e pretencioso. Você acaba por condicionar o seu processo de criação através de valores superficiais, pois ele pode significar algo hoje e amanhã significar outra coisa, ou até mesmo nada. Nossa preocupação absoluta num processo de concepção deve ser a busca por uma construção embasada sobre valores que vão além da imagem do que alguém virá supor. Pelo contrário, deve ser a significação que aquilo construirá, o que o projeto significará para os outros e não para uma crítica intelectual ou teórica, embora isso também tenha a sua importância. Mas isso configura outro momento. No âmbito da concepção o importante é pensar o que aquela ação irá significar para uma Arquitetura entendida não apenas como uma instituição teórica ou como uma decorrência das questões contemporâneas. Sobretudo, o significado que a Arquitetura pode assumir para o indivíduo, para aquele por quem existe, essa é minha grande preocupação. A Arquitetura carrega uma questão fundamental, ‘a permanência das coisas’, algo muito delicado. Excetuando-se algumas abordagens contemporâneas a partir das quais algo é feito para ser efêmero por definição, todas as demais sempre lidam com realidades que almejam permanecer. Qualquer construção tem isso por si mesma. Ter uma real consciência da consequência de nossas ações é muito importante. A preocupação que deve imperar é a do que ela irá significar hoje, de que maneira será lida diante das condições que enfrenta em nosso universo atual e como ela irá passar por um processo de transformação constante à medida que o tempo transcorre. A questão é: como dura a Arquitetura? Não é que ela tenha de ser a mesma durante toda a sua existência, mas como a dimensão do tempo atua na maneira como você pensa a Arquitetura e concebe um projeto. Além do mais, a leitura que se estabelece sobre uma obra é quase sempre inconstante. Podemos encontrar isso em vários âmbitos: naquilo que é imaterial e encontramos no pensamento – filosófico ou não - e no que é material, por exemplo, as manifestações artísticas. É fácil lembrar como essas questões estão sendo sempre revisadas, reinterpretadas e relidas. Pensamentos e ideias que vem desde a filosofia clássica grega são constantemente revisitados. É assim se analisamos qualquer obra filosófica. Em todos os tempos ela será sempre lida de inúmeras formas e a partir daquele contexto. Num certo momento pode significar algo e em outro pode constituir outra coisa absolutamente antagônica. E essa capacidade de interpretação pode ocorrer a partir de um mesmo indivíduo ou de diferentes pessoas. Essa forma de enxergar as artes e o pensamento deve ser levada para a Arquitetura da mesma forma e com a mesma intensidade. A Arquitetura, quando se faz materializada, é uma manifestação compartilhada por uma coletividade. Ela é fundamentalmente vivida por todos a partir do momento em que existe. Diante das imprevisibilidades do tempo, não podemos garantir que uma obra seguirá sendo pertinente e relevante daqui a cem anos. No entanto, o que temos que buscar ao máximo é que seja pertinente no tempo de hoje, no tempo em que vivemos. Se assim acontecer, seguramente a sua permanência numa dimensão temporal mais dilatada será muito mais possível.
_F8 OFF: Discutimos sempre a questão sobre para quem é a arquitetura. Você defende que ela é feita para o usuário e não diretamente para o mundo da arquitetura acadêmica, mas sim, essa discussão é resultado de um processo que tem como fim a qualidade em seu tempo e para o usuário que se destina. Na sua opinião o usuário interpreta a arquitetura ou ele só usa o espaço indiscriminadamente?
DC: Aqui entramos numa das questões mais belas sobre que é a Arquitetura. Houve um momento para mim muito significativo que me permitiu entender isso melhor. Foi quando me defrontei com um discurso do arquiteto mexicano Luís Barragán do começo da década de 80 no qual ele falava sobre como enxergava a Arquitetura naquele momento. Ele apontava que haviam desaparecido dos textos de Arquitetura palavras como mistério, silêncio, solidão, emoção, expectativa, beleza, passando a se questionar sobre o que é Arquitetura se não enxergamos mais essas coisas. Onde está arquitetura se essas palavras todas não estão presentes? Isso teve para mim um valor tão impactante que continuamente ainda penso nisso. Quando nos perguntamos se alguém compreende o que propomos, em que consiste exatamente essa compreensão da Arquitetura? A Arquitetura tem uma linguagem própria que muitas vezes só nós compreendemos. Acredito se originar um grande encanto quando a Arquitetura se depreende disso, não abrindo mão, mas indo além dessa indagação. Quem precisa ser arquiteto para entender o que é um momento de emoção? Ninguém. Todos, inconscientemente ou não, somos contagiados por qualquer coisa que se relacione com a nossa percepção. A nossa maneira de enxergar e viver as coisas vai além de questões técnicas sobre como isso ou aquilo se torna possível através da Arquitetura ou sobre a pertinência de suas características com relação aos valores e princípios que regem aquela obra. Por que hoje não construo uma pirâmide e sim um edifício que almeja ser mais condizente com a nossas condições atuais? O ‘Zeitgeist’ que tanto ouvimos falar na filosofia tem uma relevância muito grande como postura e princípio ao nos mostrar o quanto precisamos ser conscientes de nosso tempo. Não significa que precisemos nos restringir a ele, mas precisamos compreendê-lo. Além disso, a Arquitetura é capaz de falar por si mesma. Ela se manifesta e, naturalmente, se relaciona com as pessoas pela sua própria existência e realidade. No fundo, uma definição do que pode ser a Arquitetura é aquilo que queremos que as pessoas leiam e sintam no momento em que vivenciam o espaço que concebemos. Será que gostaríamos que, invariavelmente, alguém entendesse que aquele é um edifício que carrega influências da arquitetura moderna alemã bem como da contemporaneidade proveniente dos princípios de um arquiteto como Jean Nouvel? Ela não precisa saber disso. O que importa é que aquele espaço provoque nessa pessoa um momento de experiência e de vivência capaz de instaurar nela uma memória e de contribuir para que possa construir a sua própria história. Um momento de referência, a criação de uma memória através da qual o indivíduo, ele próprio, constrói a sua existência e a sua experiência. Lembre-se de qualquer momento de sua vida. A Arquitetura estará lá. O que a Arquitetura influenciou naquele momento? Nós, como arquitetos, talvez consigamos estabelecer um pensamento sobre isso e, se por um momento, percebermos que aquilo que projetamos pôde ser capaz de fazer com que algum indivíduo constituísse ali um momento de sua vida, isso sim é de um valor muito grandioso e que traz um verdadeiro sentido ao que fazemos. O Oscar Niemeyer define isso de maneira elementar quando afirma que, diante de seus edifícios, ao menos por um momento aquela pessoa teve uma experiência sobre o que é único e o que é belo. Existe alguma ‘função’ mais importante do que essa? Imagine o significado disso para essa pessoa. Ou seja, não é você como arquiteto que determina algo. Ao contrário, você torna possível que as pessoas criem os referenciais de sua própria existência. Essa presença da Arquitetura estabelece uma relação de significado muito grande por meio do que constrói como memória e pela singularidade de sua experiência. Coloque-se no Eixo Monumental de Brasília. Aquilo se torna um ponto de referência nas suas experiências. Torna-se torna um momento balizador. Um aspecto importante é que os espaços que concebemos permitam o acaso, proporcionando memórias individuais e coletivas para quem os vivencie. Que eles proporcionem à vida e às relações humanas como um todo, o valor do imprevisível, da experiência do coletivo e, consequentemente, da ideia de memória. Isso encerra uma ideia muito vinculada ao pensamento que nos conduz hoje. De modo muito impactante e lúcido o José Saramago diz de que cada vez mais vamos nos sentir perdidos entre nós e, também, de nós mesmos. O mundo ruma para esse caminho, para a falta de sentido. O que traz sentido à nossa própria existência? Como construir esse sentido? O que ele significa? Essas questões são muito importantes. O que nos tornam estáveis? Nossa cultura é sempre pautada pelo novo, pelo prazer efêmero, pelo súbito e pelo que acontece naquele instante. Se vivemos numa constante sobreposição, superação, anulação daquilo que foi anteriormente, o que resta quando olhamos para trás? O que temos e podemos tomar como uma base minimamente sólida e densa que seja capaz de nos fazer entender o caminho que trilhamos e o que vamos construindo como significado para um suposto momento futuro. Hoje nos encontramos num plano absolutamente frágil e crítico, numa situação de profunda falta de consciência do que é a nossa existência. Essa é uma das razões mais fundamentais que nos deve fazer pensar em como a nosso ofício de arquiteto pode contribuir para que isso seja minimizado, para ajudarmos aos indivíduos a criarem certas referências nesse turbilhão desmedido de coisas que fazem com que, ao final, não enxerguemos nada.
_F8 OFF: Você citou Luís Barragán nos anos 80, que falava da falta das palavras como solidão, mistério, incerteza, na arquitetura, elas têm um peso negativo e no entanto, talvez gerem resultados positivos. Hoje, 30 anos depois, falamos muito de otimismo, principalmente na Escandinávia, isso é uma linha muito contrária ao que víamos antes, o que você acha disso?
DC: O otimismo na Escandinávia talvez exista, mas quão lúcido pode ser esse otimismo? Para qualquer um que tenha a mínima noção do que é o mundo hoje é difícil falar em otimismo absoluto. É imprescindível termos a consciência do que é a nossa realidade hoje, definida como uma ‘aldeia global’ no sentido de uma humanidade independente de fronteiras culturais ou econômicas. Uma condição muito extrema em todos os seus âmbitos, desde a fome até os valores instaurados. Essa realidade é trágica. Porém, isso não deve aniquilar o nosso otimismo. Particularmente, continuo acreditando muito no que é a humanidade, em sua capacidade de pensar, fazer e rever coisas. Quando Luís Barragán cita essas palavras, não interpreto sua atitude como algo pessimista em relação às experiências humanas. Talvez esteja apenas tentando se aproximar mais do indivíduo singular e solitário, do ser humano como alguém absolutamente só, sendo esta uma condição extremamente difícil de ser admitida. Isso é algo sobre o qual a filosofia fala muito. Eu jamais poderei sentir aquilo que o outro sente, seja um sentimento bom ou ruim. Você pode me descrever uma felicidade enorme que esteja sentindo, mas jamais sentirei essa mesma felicidade. Isso é impossível porque o que o impede é exatamente esse distanciamento fundamental que existe entre dois seres existentes. Acontece que somos fundamentalmente solitários em nossas vivências e em nossas existências. Em minha opinião, uma das coisas que o Barragán comunica através de sua arquitetura é sobre o quão importante é conhecermos e admitirmos essa condição. Não a tomar como algo ruim, mas sim como algo com o qual precisamos apenas saber como lidar. Não enxergamos essa condição pode fazer com que nos tornemos mais distantes um do outro e, consequentemente, menos humanos – algo que necessitamos ser cada vez mais. Talvez fazer Arquitetura seja fazer com que o outro olhe para si mesmo, seja isso realizado consciente ou inconscientemente. Isso foi algo que Barragán buscou em suas obras. Particularmente tenho uma experiência muito significativa que direcionou meu pensamento nessa direção. Quando vivi no México tive a oportunidade de visitar uma obra dele chamada ‘Las Arboledas’: um grande plano de ocupação nos arredores da Cidade do México que, ao final de eixo um quilômetro com grandes e belos pinheiros, ele levanta um muro branco de aproximadamente quinze metros de altura e que faz com que, ao final de uma longa caminhada nessa bela paisagem, você se depare com esse monólito absoluto. O que é uma parede que lhe faz olhar para cima, que lhe faz parar, que lhe faz perguntar sobre o que está fazendo ali. O que é isso? O que significa? O que posso dizer é que a pausa é emocionante. Acredito que o que a Arquitetura deve transmitir pode ser conseguido de inúmeras maneiras.
_F8 OFF: Barragán talvez tinha a ideia de falar que as pessoas não sentiam mais nada dentro de qualquer coisa onde estivessem, talvez fosse o que ele imaginava que a Arquitetura tinha que transmitir, ou seja, o sentido de estar ali, nesse caso havia uma maior preocupação em gerar artifícios para que as pessoas ao usarem o espaço sentissem experiências com o lugar onde se encontravam, como vemos na obra de Alvaro Siza ou Vittorio Gregotti em seus textos sobre o Território, uma arquitetura orgânica por definição. Hoje há uma enorme preocupação de que a arquitetura seja por si só, através de sua imagem, algo impactante, que transmita uma ideia forte. Neste panorama em que âmbito sua arquitetura se encontra?
DC: Você tocou num assunto muito importante que é o valor da imagem. A Arquitetura pode transmitir inúmeras coisas por si só. Se houve uma mensagem conclusiva a partir das reflexões instauradas pela Pós-Modernidade que aconteceram na segunda metade do século XX é que a Arquitetura deve se preocupar sobre como se comunica com o indivíduo, pois, invariavelmente, significará algo para ele. O modo como isso acontece na cultura contemporânea é muito perigoso, pois o que presenciamos é uma exploração desmedida da iconicidade das coisas, um excesso de ‘arquitetura espetacular’. Pense no significado que essas coisas constroem. Estamos saturados desse espetáculo. Ao longo das duas últimas décadas a Arquitetura tem sofrido absurdamente por sua vulnerabilidade àquilo que pode representar: grandes símbolos, grandes marcos, grandes expressões. Mas qual a sua profundidade. Símbolos que dizem o quê?! Essa é uma reflexão que precisamos fazer. O contexto contemporâneo potencializa em muito o predomínio de coisas pensadas para serem feitas o mais rápido possível e sem grandes critérios para além dos efeitos e impressões que aquilo terá naquele momento. Impera o furor que sua expressão causará. Sem dúvida, a crise do ocidente e a sua proximidade atual com uma economia oriental potencializada onde isso se dá como fenômeno de prosperidade, torna tudo mais grave. Mas e amanhã o que aquilo tudo irá significar? Mais crítico ainda é pensar sobre isso nos dias de hoje. Qual a pertinência disso tudo? De que maneira essas realizações vem sendo instauradas como instrumentos de controle, de exploração absurda do consumo e de preservação da força do capital como condição econômica e valor que deve imperar sobre tudo e todos. Qual a moral por trás disso? Não que tenhamos todos que fazer uma Arquitetura pautada pelo silêncio e pela aversão a qualquer qualidade espetacular. Não defendo que deva existir uma única linguagem arquitetônica, pelo contrário, essa diversidade deve fazer parte do nosso processo de concepção. No entanto, o que não deve desaparecer é um embasamento filosófico extremamente sólido e profundo, responsável por orientar o que pensamos em prol da pertinência cada ideia possui em relação às condicionantes na qual fará presente. Em muitos casos se faz necessário que a Arquitetura seja autenticamente presente e protagonista, sendo às vezes até óbvio. Porém, em outras situações é necessário que ela desapareça e que sequer seja percebida. O que não podemos é submeter uma postura cautelosa de se pensar cada situação em sua singularidade a um predomínio onde tudo seja sempre extraordinário no sentido de resultar num espetáculo, numa aparição e num excesso de artifícios para que tudo se transforme em símbolo. Em grande parte, os símbolos que criamos hoje são fugazes e superficiais. Eles simplesmente não duram. Pensemos nos motivos e nas razões que se encontram por trás desses projetos de excesso e desses grandes empreendimentos urbanos. Em grande parte, as suas razões e seus objetivos não correspondem aos nossos como arquitetos. Nossas motivações e prioridades vêm sendo sobrepujadas pelos objetivos de outros. Então, se presenciamos alguma concessão nesses casos, é frequentemente uma concessão dos arquitetos a um interesse econômico e de consumo dessa mesma Arquitetura. Isso nos coloca diante de um fenômeno muito perigoso.
_F8 OFF: Os projetos de seu escritório já começaram a mudar a forma de como olham vocês hoje?
DC: Acredito que não. Somos muito novos. O Complexo Trabalhista do TRT de Goiânia, que é a nossa realização mais importante, é uma obra que envolve todas essas questões que estamos dizendo. A primeira parte do complexo já foi construída, mas ainda tem por vir a sua etapa mais importante: o vazio, o espaço público por definição. É algo que ainda está em processo que resulta difícil assimilar todos os seus aspectos. Essa é uma consequência da exposição que a Arquitetura carrega quando entendemos que nos expomos através de cada projeto. Ele é uma representação do que somos nós. Essa é uma reflexão que sempre me acompanha, ou seja, aquilo que faço é uma representação do que eu sou. Isso que me leva a pensar profundamente no valor de nosso ofício. Se a Arquitetura é uma representação do que sou através de mim mesmo, então o que sou não deve ser unicamente para a minha existência própria. Pelo contrário, o que sou deve, imperativamente, superar a minha noção particular e restrita de indivíduo. Aquilo que somos como arquitetos deve existir para um âmbito exclusivamente público, assumir um significado maior do que nós mesmos. Isso é algo que está sempre em meu pensamento, em qualquer ação de projeto, em todo momento que penso sobre Arquitetura. Não é a representação de uma pessoalidade minha como expressão artística. Não é isso. O que existe de nós ali é uma expressão do que pensamos sobre o mundo. O que penso sobre o mundo é decisivo, o que eu sei sobre ele, o que conheço dele, o que entendo ou não, o que tenho por desvendar, como descobri-lo, como interpretá-lo, etc. Cada vez mais isso faz com que me preocupe em enxergar as coisas com um pouco mais de clareza e lucidez. Caso contrário, estarei sobre um território muito perigoso e, tendo a consciência sobre a responsabilidade por trás de nossas ações, não posso me permitir se assumir tal risco. Por essa questão de sermos muito novos e não termos muita coisa ainda realizada, sinceramente, não sei como essas preocupações são vistas. É interessantíssimo visitar a obra e ouvir as impressões de pessoas, pois isso reflete aquela primeira questão que estava dizendo sobre o significado que a Arquitetura possui para elas. Às vezes você ouve comentários que jamais imaginaria, impressões que você jamais pensou sobre aquilo que projetou. Por exemplo, quando vou a Goiânia e peço a um taxista me leve ao Fórum do TRT e ele responde ‘aquele prédio tal e tal...’, descrevendo-o como o sabe e a partir do que seu olhar fez com que significasse, é uma ocasião resulta numa leitura muito amistosa com a qual devemos ser atentos e aprender cotidianamente.
_F8 OFF: Em função do Tribunal e colocando em questão sua obra mais importante até o momento, falemos sobre a imagem que o edifício transmite. É perceptível que o projeto foi pensado em duas partes: a primeira uma caixa preta e a segunda uma caixa branca, isso tem algum significado simbólico, como se deu essa ideia? E mais, fazer um Tribunal criando um espaço público num trecho intermediário entre esses dois blocos, como essa ideia se deu, teve mesmo a intenção simbólica?
DC: Mais do que um símbolo, é um significado. Nós nos preocupamos muito em pensar sobre qual seria o significado dessa ação arquitetônica, sobre qual sentido estaria sendo construído através da presença da Arquitetura nesse lugar. Unimos algumas questões do conhecimento arquitetônico que o arquiteto americano Louis I. Kahn define muito bem: a Arquitetura é uma instituição em si mesma assim como outras também são, por exemplo: uma escola é uma instituição, uma prefeitura, um parque, uma rua são instituições. Do mesmo modo um Fórum ou um Tribunal também tem suas singularidades como instituições a partir das quais reconhecemos coisas que eles devem dizer, mensagens que devem conter para serem Arquitetura. Um dos aspectos que logo de início despertou atenção foi a noção do significado que aquilo configuraria. Outro aspecto foi uma sobre uma reflexão muito próxima daquilo que estamos discutindo sobre a necessidade de certas pausas, ou seja, sobre o que algo dessa natureza pode estabelecer num contexto urbano por meio da existência de um grande complexo como o nosso. A cidade de Goiânia tem algumas especificidades por ser uma cidade planejada sendo uma delas a existência de um Centro Cívico em sua estrutura. Acontece que o terreno do Tribunal se encontra deslocado disso, numa estrutura urbana incompatível a escala e o uso que tem o complexo, além de ser uma área predominantemente residencial. Esse fato apresentou uma contradição: o projeto deveria se colocar num contexto nada condizente com um equipamento de sua natureza e escala. Como deveríamos lidar com isso? Diante dessa preocupação tenho uma postura muito contundente que é pensar a coerência e o equilíbrio que a proposta deve ter com respeito à situação com a qual está se relacionando. O cuidado em pensar as hipóteses com muita precisão a ponto de se aproximar ao máximo daquilo que o projeto só poderia ser. Lógico que existem inúmeros caminhos para lidarmos com uma questão arquitetônica e talvez essa seja uma das maiores angústias de nosso ofício. Mas, independentemente dessa infinidade de caminhos, devemos fazer com que o caminho adotado se aproxime ao máximo daquilo que, imprescindivelmente, teria que acontecer ali naquela situação. Nesse projeto o equilíbrio e a consistência com essas relações urbanas, seu contexto e a escala do edifício era muito importante. Assim, duas coisas passaram a ser primordiais. A primeira delas foi a existência do vazio como principal espaço do projeto: uma praça central de escala monumental (100mx60m) que fosse o grande elemento do complexo, representando o caráter público que define um Tribunal como instituição. Junto a isso, uma das coisas que deveria inaugurar essa instituição era um lugar absolutamente público e que fosse possível ser utilizado por qualquer um a qualquer momento. Não é aceitável que uma instituição pública não tenha isso como prioridade. Elas representam os cidadãos e não podem diminuir a sua possibilidade de disfrutar daqueles espaços que lhes pertencem, independentemente se os usarão por sua função programática ou não.
Outra questão importante estava na economia de meios para fazer com que esse elemento transmitisse seu significado. Qual o mínimo que podemos fazer para que nossas ações assumam algum significado? Acredito que essa preocupação tenha um vínculo muito grande com o exercício da arte e com as manifestações das décadas de 50 e 60, quando começa a ser explorada. O que conhecemos hoje de maneira muito superficial como Minimalismo, tem por detrás uma filosofia muito mais densa. Vincular essa postura à instituição do Fórum foi muito importante. Então, primeiro existe uma busca por um equilíbrio e por uma neutralidade de elementos e que não deixem de falar sobre a Instituição em questão, como Fórum, como Tribunal, como imparcialidade diante de uma questão humana, como neutralidade de forças ali colocadas uma diante da outra. Em prol da ideia de justiça, esse ato de ‘julgamento’ deveria ser o mais neutro possível. Nesse aspecto, diante das vulnerabilidades que, talvez, o Direito também tenha, a Arquitetura tem o privilégio de poder falar de modo indubitável. Isso se deu por meio da geometria dos edifícios - que configuram algo muito simples: prismas compactos, puros, monolíticos -, e da neutralidade das cores - onde em meio ao predomínio do branco surge um único elemento distinto dessa atmosfera, desse aspecto exterior do conjunto, que é o preto que envolve o Fórum. Diferente do branco onde tudo que acontece é exterior, o Fórum tem esse âmbito histórico e secular de constituir um espaço coletivo e, dentro da complexa estrutura do Tribunal ser o elemento mais público de todo o conjunto. Por isso ele é distinto. Por isso ele é diferenciado em relação aos demais componentes e definido por outra cor, nesse caso a cor negra. Isso estabelece um enfrentamento às hierarquias tradicionais pois o edifício branco abriga a segunda instância onde estão os Desembargadores e a Presidência, os quais hierarquicamente, ocupam um patamar superior. Só que não é isso que tem que ser diferenciado e enaltecido, mas sim o outro, aquilo que é público. Por isso o Fórum é distinto, maior e singular diante dos demais. Depois, há uma relação entre simplicidade e complexidade que é muito interessante. Ou seja, é o muro branco do Barragán. Qual a complexidade que aquilo apresenta? Nenhuma. Por outro lado, aquilo significa muito. No Tribunal isso foi muito importante pois ela é sim uma Instituição de extremo valor simbólico. Aí entra a questão do símbolo que supera o que é arquitetônico. Ele é institucional. Ele é para a sociedade e para a cidade. O Complexo do Tribunal se insere no contexto de uma forma muito impactante pela sua própria simplicidade: um monólito negro e um monólito branco, elementos dialogando e se contraponto um ao outro. A medida que nos aproximamos, essa geometria simples que vemos passa a nos dizer outras coisas. Primeiro, sobre uma linguagem arquitetônica, ou seja, o que é isso que conhecemos tradicionalmente como Fórum através de um repertório clássico da Arquitetura e que se repete até os dias de hoje em muitos lugares, onde uma instituição como essa tem sempre que ser monumental e reverenciada através de certos símbolos arquitetônicos. Por exemplo, o Fórum Romano é um grande edifício com pórticos, elementos verticais e grandes colunatas. Quando você se coloca ao lado de uma coluna de um Fórum, você se sente totalmente insignificante. Não só a escala do conjunto, mas uma mera coluna faz com que você se sinta pequeno e perceba o quanto aquilo é grandioso. Uma monumentalidade de linhas verticais, pórticos, frontões e escadarias que se encontram sempre diante de templos e o condicionam a que esteja em uma orientação axial ao edifício, que tenha que ascender e curvar-se incondicionalmente diante daquilo, que tenha que olhar os degraus e ao mesmo tempo se colocar de frente a algo muito maior do que você. Essa noção de monumentalidade que a Arquitetura Clássica coloca não fazia sentido nenhum sentido para nós nessa situação. Ela deveria existir, mas de outra maneira. Então, eis o que fizemos. Primeiro, a escada existe como um momento de definição de dois tempos diferentes da cidade: você está na rua e precisa passar por uma ascensão para chegar num outro momento, mas esse momento não é o prédio e sim a praça, o vazio, o lugar de todos. Você não sobe essa escadaria em direção a um edifício. Não, você sobre essa escadaria em direção à praça, ao vazio. Depois, os elementos construídos são colocados um diante do outro de modo a gerar esse espaço, que é o principal lugar. Já conhecemos os elementos primordiais que estabelecem os tempos das linguagens da Arquitetura, buscamos interpretar de outra maneira, um modo menos monumental e opressor. Uma outra relação importante que tem o vazio era no edifício do Fórum: um caixa de quase quarenta metros de altura que você adentra pelo plano da praça. Nele, não encontramos elementos arquitetônicos muito claros. O que temos é um volume, um monólito e não uma coluna, um pórtico, um embasamento ou um coroamento. Nenhum desses elementos está presente. Ele é simplesmente um monólito. Mas onde se encontra a relação de monumentalidade com o usuário? É onde entra a percepção, ou seja, qual é a noção de presença que esse elemento pode estabelecer? Ele é um elemento muito grande e que transmite um certo peso, uma certa densidade, e que, por outro lado, desperta certos mistérios, certas dúvidas. Ele é pesado, mas não toca o solo, então como é possível levitar. Como se sustenta? Ele é grande e monumental por si só. As pessoas acessam o prédio por uma fresta consideravelmente pequena. Então, você passa por uma fresta de oitenta metros de comprimento por dois metros e meio de altura. É natural que aquilo provoque uma relação entre grande e pequeno, mas não necessariamente lhe colocando diante de uma imponente coluna de 2m de diâmetro. Ela te evoca por outro caminho. O mais interessante ainda é que, quando você entra no espaço, percebe que aquela fresta de dois metros e meio se transforma em um vazio de doze metros de altura. É nesse momento que você percebe que aquele volume sólido, preto e bruto, na verdade, assim como em seu exterior, também tem em seu interior um vazio para lhe acolher. Esse processo de percurso, descoberta e relações que o usuário tem com a Arquitetura foi importantíssimo para os critérios de pensamento desse edifício. Por fim, nessa aproximação existe a relação com a construção. Ou seja, esse edifício que à distância é um monólito preto feito não sei muito bem de quê, à medida que vou me aproximando, vejo que encontro uma complexidade condizente com o valor da instituição que ele representa. Percebo que o que define essa simplicidade são elementos de altíssima complexidade: as fachadas. São os elementos de proteção, de vedação e de construção de significado. Ele é inteiramente preto, construído e possibilitado através de uma altíssima tecnologia construtiva de vidro, aço e outros materiais. É nessas superfícies que, além do preto e do branco, existe a única cor do complexo: em algumas faixas extremamente sutis e leves encontramos o vermelho pontuando simbolicamente a cor do Direito, Instituição ali abrigada. Isso é interessante. Às vezes estando lá ver o outro lado do que estamos conversando: a curiosidade e a descoberta. Muitos não percebem. Outros dizem: “É diferente, tem umas faixas” ou “Tem umas faixas vermelhas.” Outros perguntam: “Por quê aquilo é vermelho?”, e outros afirmam: “Isso é vermelho porque tem a ver com o Direito!” Essa relação que se cria com o usuário através de alguns elementos da Arquitetura é interessantíssima! Por trás disso há uma somatória. Vemos que através disso a Arquitetura vai sintetizando uma série de informações do repertório e da linguagem arquitetônica que conhecemos: questões clássicas da história, a questão do significado, do indivíduo, da cidade, da tecnologia e da construção. Isso vai se fundindo em elementos que assumem mais de uma razão de serem. Ou seja, um vidro não serve apenas para vedar um edifício. Serve também para falar sobre diversas coisas. Temos que nos preocupar com complexidade dos elementos com os quais lidamos. Eles não podem ser reduzidos a um mero desempenho técnico, assim como o inverso. Não poderia haver qualquer outra cor nesses vidros que não o vermelho, porque é uma questão absolutamente de significado. Aí começamos a somar as coisas. Elas falam muito mais do que aparentemente parecem dizer.
_F8 OFF: Qual a virtude da arquitetura como ciência e arte?
DC: Essa pergunta é extremamente inquietante pelo que sintetiza. Ela fala sobre, Arquitetura, Ciência e Arte, talvez os exemplos mais grandiosos do que podemos entender como manifestações humanas. Sempre me recordo de uma definição muito bonita do Louis I. Kahn sobre isso. Ele diz: “A Ciência lida com aquilo que existe, a Arquitetura lida com o que não existe”. Ou seja, a Ciência lida com a suposta compreensão do que é a realidade. Noção esta que a filosofia afirmará sermos incapazes de entender completamente. A compreensão do que é a realidade é inacessível, pois a visão que temos dela é sempre uma interpretação daquilo que enxergamos sobre o mundo. Então, ela nunca é absoluta. Mas, evidente, a Ciência nos informa muito sobre a realidade, e ela existe para isso, para entender, conseguir explicar de certa maneira um pouco aquilo que nos define e nos envolve. Isso, lógico, é âmbito de todas as Ciências. Por outro lado, segundo o Kahn, assim como a Arte, a Arquitetura lida com o que ainda não existe. Então, o que é o nosso ofício? É lidar com o inexistente, com o que estar por vir. Isso implica numa angústia muito grande, o que é bonito e que talvez seja uma das grandes emoções de fazer Arquitetura: dar origem às coisas. Trazer algo à existência é uma definição de criação. Num outro discurso sobre o que define o que é Arte, Arquitetura ou qualquer outra manifestação responsável por uma criação, ele diz o seguinte: “é aquilo que mostra que a natureza não é capaz de fazer e o homem é capaz de fazer”. O que ele define é uma equivalência de reconhecimento da diferença que tem o ser humano em relação ao que demais existe. Não que um seja maior que o outro, ou que um seja mais potente que o outro, mas há uma singularidade humana nesse aspecto. Não podemos fazer o que a natureza faz. Não posso desenhar uma flor tão bem quanto a natureza faz por si só. Por mais que tentemos isso, é impossível. Por outro lado, Kahn revela uma beleza que é contrária a essa impossibilidade: a natureza também não é capaz de fazer o que nós fazemos. Isso é muito emocionante. Pense. Fazemos coisas únicas, somos capazes de um certo modo de criação muito potente e que só nós podemos fazer. Lógico, isso jamais pode ser interpretado a partir da prepotência de superação da natureza. Esse risco não podemos assumir. Não devemos, por isso, nos sentirmos superiores a uma condição natural, como fizemos durante séculos. A razão foi responsável por essa ideia do ser humano como um ser superior a tudo que envolve. Foi responsável, em grande parte, pelas condições do universo que vivemos hoje e que não são nada boas. Não podemos adotar uma interpretação desse tipo, mas se a entendemos por outro lado, é muito bonito como nos leva a pensar na singularidade de nossas obras, sejam elas o que forem: uma ideia, uma interpretação do que vemos, uma poesia ou até uma grande e suntuosa construção arquitetônica. Esse paralelo entre Ciência, Arquitetura e Arte é belíssimo: como as estas manifestações, no fundo, dialogam dentro desse âmbito do que é o conhecimento humano e como uma serve à outra. Fazemos muito uso da Ciência e devemos continuar fazendo. Ela nos permite a construção de um entendimento de valor inestimável. Isso é muito importante para nós arquitetos, para entendermos o significado, a pertinência e a compreensão do que pensamos. Se remontamos à ideia de que nossas obras refletem o que pensamos sobre o mundo, é importante que entendamos e que sejamos inquietos em relação a esse conhecimento científico. Ele que nos dará subsídio para uma série de coisas. Sejam dos conhecimentos mais abstratos aos mais concretos, como a tectônica, a física que torna possível a existência da Arquitetura em sua materialidade. É nessa Ciência que entende tanto o cosmos como o micro mais próximo de nós, seres humanos, que temos que navegar. Por outro lado, encontramos a enorme liberdade que a Arquitetura nos oferece: se lidamos com aquilo que ainda não existe, como deve ser assimilada a responsabilidade de dar origem a alguma coisa? Ou seja, como, través e por meio de quê me sinto confortável e apto a originar alguma coisa? A cada dia, isso me faz sentir o mais inquieto por aprender cada vez mais, por saber e conhecer ao máximo as coisas, de modo que essa capacidade criativa seja a mais lúcida possível, seja profunda e coerente, segura e estável, que assuma uma realidade e se torne real através de um juízo e uma postura crítica profunda. É nossa visão sobre o mundo que constrói um aparato para agirmos sobre ele mesmo. Isso é muito importante. Nossa capacidade de ação é muito potente e muito singular. Ela tem que se encontrar calcada sobre sólidas bases de conhecimento, ou seja, realmente devemos entender aquilo com que estamos lidando. Por isso me interessa muito seguir caminhando por essa ideologia: uma arquitetura que seja cautelosa e que nunca parta de uma imposição prévia de pensamentos, mas de um entendimento amplo daquilo que será feito. Ora, se em algum momento serei responsável por uma ação, preciso compreender plenamente onde essa ação se dará, em qual contexto, sob quais condições. Na verdade, a suposta folha em branco que nos apavora é irreal. Não existe nenhuma folha em branco. Em alguns casos talvez até exista, mas antes de qualquer uma de nossas ações, essa folha deve começar a ser preenchida por nossa leitura sobre aquela condição. Então, ela não é tão branca assim. Ao invés de começarmos a intervir nessa folha em branco através da nossa ação, acho muito importante que venha antes a leitura sobre as condições que estamos trabalhando. Desse modo, trabalhamos por um caminho de muito mais cautela com as consequências que nossas ações terão. Essas ações passam por uma base de critérios que não são unicamente ligadas às minhas ou suas intenções. Elas também existirão nesse projeto, logicamente, mas não serão predominantes. Esse drama da criação e da invenção que aparentemente é livre, na verdade, não é e nem deve ser. É necessário construir uma complexidade de leitura para que esse projeto vá tomando forma de uma maneira mais profunda e singular em relação à situação que ele estabelecerá. Compartilho muito da ideia de que cada projeto é único, pois as condições são sempre diferentes. São únicos em vários âmbitos. É evidente que se encontre certas similaridades, pois isso se faz através de seu pensamento, do olhar do arquiteto. Mas o importante é que prevaleçam os valores e os cuidados com relação ao que se trabalha. Isso é muito mais importante. Que, posteriormente, o que venha consolidar tudo isso seja uma ação, que seja muito bem embasada pela consciência e pela construção de um conhecimento sobre as situações em que se dará.
_F8 OFF: Como ver a escassez de investigação dentro das Faculdades de Arquitetura e Urbanismo de nosso país em termos da tectônica, ou seja, conhecimento físico e material dos elementos e do processo construtivo? A industrialização das peças não trouxe comodismo dentro dos ateliês fazendo com que o sentido do projeto se vulgarizasse, em termos de não inventar, mas simplesmente consumir em função da relação custo x benefício, fazendo ser o que hoje é (de modo geral) a arquitetura em nosso país, ou seja: deixando o sentido intelectual de lado, em termos de proposições, investigações sobre raciocínios construtivos e conforto ambiental na arquitetura e atrofiando o sentido maior do ofício, pensar o construir de modo sensível e inteligente em todas as etapas do projeto? Ainda nesse ‘mote’; qual sua leitura em relação à descontinuidade, na arquitetura brasileira, do emprego adequado de sistemas de fachada e a abrangência deste tema, que outrora, por exemplo, se via com frequência no Escritório de Rino Levi?
DC: Essa questão coloca uma discussão sobre a ideia de invenção, algo extremamente importante. É interessante pensarmos um pouco sobre os confrontos que acabam existindo hoje. De um lado temos uma possibilidade tecnológica absurdamente grande de investigarmos, de criarmos materiais e de propormos novas soluções. Eu acredito que, de distintas maneiras, isso acontece em grande parte do mundo. Por outro lado, temos a predominância de uma certa condição onde a Arquitetura é construída quase inteiramente a partir de um catálogo ou de um mostruário de elementos construtivos de onde se deve escolher os componentes da construção. Ao final, aquela arquitetura se transforma praticamente em um showroom de materiais. Então, revela-se essa dicotomia. O arquiteto inglês David Chipperfield fala de como somos forçados a pensar dessa maneira e como temos que saber lidar com isso, pois não deixa de trazer seus benefícios. A industrialização torna uma série de coisas economicamente viáveis, mais rápidas e mais precisas. Ela é hábil na diversidade de materiais e nas possibilidades que nos apresenta através de uma série de benefícios na sua utilização. Temos que assimilar essa qualidade da industrialização dentro dos projetos, só que, de maneira alguma, isso deve anular o carácter inventivo que as obras devem ter. O desafio é como unificar as duas coisas e jamais fazer que o projeto se torne basicamente a aplicação de catálogos. Ou seja, a tecnologia existe, mas qual o significado que o uso dessa tecnologia implica? Essa é a questão. Qual o significado que assume? Assim como aquilo que falamos interiormente, uma fachada não é só uma fachada.
_F8 OFF: Um livro recente foi intitulado ‘A Função do Ornamento’. O que é essa função no seu entendimento?
DC: Essa é uma discussão de extrema relevância. Nesse aspecto, vivemos um momento muito rico após um Século XX, onde num primeiro momento, vimos a exploração desse caráter industrial das coisas a partir da sua praticabilidade técnica, sendo a indústria entendida como um bem por si só. Por muito tempo foi basicamente a manifestação desse valor o grande mote da construção arquitetônica. Depois, na segunda metade do século XX, passamos por um período que falou de outras coisas como, por exemplo, o fato de os edifícios não poderem ser mudos. Os edifícios devem falar algo, eles têm que se comunicar. Logo, nós somos privilegiados por vivermos em um momento posterior a essas duas fases e, de certa forma, podermos entender cada uma delas e buscar fazer uso de ambos valores. É fato que a Arquitetura precisa comunicar. Isso se tornou muito evidente depois dos americanos Robert Venturi e Denise Scott Brown. Mas é fato que a Arquitetura também é algo construído. Ela não é um mero ‘outdoor’, não, ela tem uma complexidade técnica construtiva e isso também faz parte da questão inventiva da Arquitetura. Vivemos hoje o desafio de tentar construir um significado entre essas duas coisas. No entanto, a economia e o predomínio da ideia do consumo, sempre vai nos forçar a usar o que é standart e o que é padronizado, pois essas são coisas muito mais promissoras em seu valor de consumo. Toda invenção demanda um processo de experimentação, isso é fato. Não é sempre que encontramos essas oportunidades. O que o Chipperfield diz é que “tudo bem, temos esses leques de opções, mas a questão é ter a habilidade de tratar isso em favor da arquitetura e não da indústria”. Ou seja, como fazer com que esses elementos que estão disponíveis tenham um significado arquitetônico? Às vezes eles terão de ser interpretados de uma maneira diferente. A invenção é possível e pode acontecer diferentes graus. A tecnologia e a invenção não dizem respeito apenas ao alto desempenho de seus elementos, pelo contrário, você pode visitar obras em qualquer lugar do mundo e encontrar projetos brilhantes, construídos de maneira nova e inventiva, mas com técnicas absolutamente rudimentares e simples. Precisamos rever um pouco o que entendemos por tecnologia. Ela não é só definida unicamente por aquilo que é de ponta, de laboratório. Não, o que é mais inventivo é reinterpretar algo que já existe. Isso sim é maravilhoso. Um projeto antológico e singular nesse aspecto é a Vinícola Dominus nos EUA dos arquitetos suíços Herzog & De Meuron. Podemos considerar que é uma obra de um programa muito refinado, mas o que é muito impressionante ali é a reinterpretação de alguns materiais e de algumas soluções técnicas. Analisando só pela questão inventiva, aquilo é impressionante. Então, o que é a invenção? Não é só a criação de um plasma que se mexe. Não, às vezes é muito mais reinventar do que criar algo absolutamente novo. O Chipperfield chama a atenção sobre como vemos a tecnologia e sobre o encanto que temos pelos seus avanços. Depois desse encantamento devemos tomar muito cuidado com o que chamamos de avanço tecnológico e pensarmos sobre o real significado dessas ações. Um exemplo que ele usa é o cinema: no início, quando se tornou possível captar o movimento, registrando um período e não mais uma imagem estática, o que se via nos primeiros filmes eram pessoas na frente da câmera se movimentando como fantoches. Aquilo não significava absolutamente nada e não possuía nenhum conteúdo a não ser o da demonstração de que então era possível captar o movimento. Chipperfield diz que “aquilo só veio a se transformar verdadeiramente em cinema quando foi utilizado para criar significado, criar algo que vai fosse da própria tecnologia.” Isso é algo de muito valor quando nos preocupamos em falar sobre tecnologia e todas questões referentes à Arquitetura.
Título: Com a Voz _F8 OFF
Autores: Daniel Corsi, Ronielle Laurentino, Marcelo Macedo, Paulo Scheuer
Ano: 2013
Entrevista com Daniel Corsi realizada por Marcelo Macedo, Paulo Scheuer e Ronielle Laurentino para a seção ‘Com a Voz’ da primeira edição da Revista _F8 OFF, publicada em Novembro de 2013, publicação Acadêmica realizada por alunos e ex-alunos da FAU-Mackenzie. Conversa realizada nos dias 29/junho/2013 e 10/agosto/2013 e transcrita para o Trabalho Final de Graduação ‘Notas sobre a forma na Arquitetura’ de Ronielle Laurentino, apresentado em Junho de 2015 à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie para obtenção do título de Arquiteto e Urbanista, sob orientação da Profa. Dra. Ana Gabriela Godinho.
Legendas Imagens:
1 (Vinicius de Moraes - O Haver)
2 (Eric Hobsbawm - A Era dos Extremos)
3 (Centro de São Paulo)
4 (Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir)
5 (Zygmunt Bauman - Modernidade Líquida)
6 (Less Aestethics, More Ethics: 7a. Mostra Internazionale di Architettura - Massimiliano Fuksas, 2000)
7 (José Saramago - A Caverna)
8 (Vale do Anhangabaú - São Paulo)
9 (Lina Bo Bardi, MASP - Museu de Arte de São Paulo)
10 (Oscar Niemeyer - Marquise do Parque do Ibirapuera)
11 (Rafael Moneo - Remarks on 21 Works)
12 (Luís Barragán - Pritzker Prize Acceptance Speech, 1980)
13 (Jean Nouvel - Fondation Cartier, Paris, França)
14 (Oscar Niemeyer - Congresso Nacional, Brasília)
15 (Luís Barragán - Las Arboledas, Cidade do México, México)
16 (Complexo TRT-Goiânia - Maquete)
17 (Complexo TRT-Goiânia - Fórum)
18 (Louis I. Kahn)
19 (Plano para o Centro Cívico de Goiânia)
20 (Complexo TRT-Goiânia - Croquis Daniel Corsi)
21 (Complexo TRT-Goiânia - Imagem Concurso)
22 (Complexo TRT-Goiânia - Modelo Conceitual)
23 e 24 (Complexo TRT-Goiânia - Inserção Urbana)
25 (Arquitetura Neoclássica - Prefeitura de Birmingham, 1832)
26 e 27 (Complexo TRT-Goiânia - Hall Principal Fórum)
28 (Complexo TRT-Goiânia - Fórum)
29 e 30 (Complexo TRT-Goiânia - Fachada Dupla Fórum)
31 e 32 (Complexo TRT-Goiânia - Fórum)
33 (Robert Venturi e Denise Scott Brown - Aprendendo com Las Vegas)
34 (Herzog & De Meuron - Dominus Winery, California, Estados Unidos)
Créditos Imagens:
1 (Moraes, Vinicius de. Jardim noturno. São Paulo: Círculo do livro, 1993)
2 (Companhia das Letras)
3 (Nelson Kon in Kon, Nelson. Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira 2. São Paulo: IPSIS, 2014)
4 (Editora Vozes)
5 (Editora Zahar)
6 (La Biennale di Venezia)
7 (Companhia das Letras)
8 (Nelson Kon in Kon, Nelson. Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira 2. São Paulo: IPSIS, 2014)
9 (Hans Gunter Flieg in Ferraz, Marcelo. Museu de Arte de São Paulo. São Paulo: Blau, 1997)
10 (Werner Haberkorn in parqueibirapuera.org)
11 (Monacelli Press)
12 (The Hyatt Foundation/The Pritzker Architecture Prize)
13 (Morgan, Conway Lloyd. Jean Nouvel: the elements of architecture. Universe Publishing, 1998)
14 (Marcel Gautherot in Gautherot, Marcel. Brasília. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010)
15 (Zanco, Federica. Luis Barragán: La revolución callada. Milão: Skira, 2001)
16 (Atelier Daniel Corsi)
17 (Nelson Kon)
18 (McCarter, Robert. Louis I. Kahn. Londres: Phaidon, 2005)
19 (Daher, Tania. Goiânia, uma utopia europeia no Brasil. Goiânia: Instituto Centro-Brasileiro de Cultura, 2003)
20 (Daniel Corsi)
21 e 22 (Corsi Hirano Arquitetos)
23 (Nelson Kon)
24 (Leonardo Finotti)
25 (Summerson, John. A linguagem clássica da arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1997)
26 (Nelson Kon)
27 e 28 (Leonardo Finotti)
29 a 31 (Nelson Kon)
32 (Leonardo Finotti)
33 (Venturi, Robert. Scott Brown, Denise. Izenour, Steven. Aprendendo com Las Vegas. São Paulo: Cosac & Naify, 2003)
34 (El Croquis 60+84 - Herzog & De Meuron (1981-2000). Madrid: El Croquis Editorial, 2000)
Como citar:
CORSI, Daniel. LAURENTINO, Ronielle. MACEDO, Marcelo. SCHEUER, Paulo. Com a Voz _F8 OFF, São Paulo, 2013.
<http://www.danielcorsi.com/ensaio/f8-off-entrevista>
(Textos e imagens de usos e fins exclusivamente acadêmicos)